Publicado no início de 2018, Como as Democracias Morrem tornou-se best-seller nos EUA e no Brasil por trazer uma série de conclusões sobre as novas formas de dilapidação de regimes democráticos – fora do tradicional golpe militar, já conhecido e visto na história do mundo e, em especial, nos emergentes do século XX.
No livro, dois cientistas políticos e professores de Harvard (Daniel Ziblatt e Steven Levitsky) alertam que a radicalização da política e a contestação do sistema político são duas vias em que a democracia é, implicitamente, atacada.
No primeiro caso, ela pode ser atestada quando a tolerância mútua entre adversários políticos se esvai, fazendo crescer a sensação de que opositores são inimigos. Nesse ínterim, a tendência de recorrer a meios antiéticos e abusivos cresce. Da mesma forma, outro modo de se minar a tolerância mútua – conceito essencial para garantir a estabilidade no jogo político – é por meio da contestação do sistema político. Ao questionar resultados de eleições, por exemplo, um líder estaria indiretamente colocando em xeque o sistema político-eleitoral, inclusive, pelo qual lhe foi concedido o poder, subvertendo a lógica democrática.
Outro termo bastante tangenciado na ciência política e no direito, durante os últimos anos, é o de “jogo duro constitucional”, cunhado pela primeira vez pelo constitucionalista da universidade de Georgetown, Mark Tushnet, em 2004. Segundo ele, existem certas práticas políticas que estão dentro dos limites constitucionais, mas que geram tensão principiológica, ou normativa (Tushnet usa o termo pré-constitucional, mas ele não é necessariamente claro) – uma espécie de regra velada que nunca antes pensava-se em quebrar, mas que foi interpretada de maneira distinta; uma brecha legal, em termos jurídicos, mas “trapaceira” do ponto de vista político. A presença dessas práticas caracteriza “o jogo duro constitucional”.
Usando do termo de Tushnet, Levitsky vai além e entende que essas práticas configuram o uso das instituições – aquelas que são a salvaguarda da democracia – como arma política contra seus respectivos oponentes. Seria o ápice da polarização, onde se passa a lançar mão de qualquer meio necessário para impedir que o outro vença.
Desde que perdeu as eleições de 2020 nos colégios eleitorais, Donald Trump adotou uma narrativa fantasiosa e “inverdadeira” de que teria ocorrido uma fraude no pleito americano e que, na verdade, ele teria sido o vencedor. Considerado um fenômeno político, Trump elegeu-se presidente em 2016 fidelizando uma forte base no Partido Republicano, fruto de indignações conjunturais do americano médio para com o sistema político e representativo dos Estados Unidos.
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A postura beligerante do presidente, nesses últimos meses, é um ataque direto à legitimidade da democracia e das instituições americanas – um dos mais sólidos, se não o mais, regimes democráticos e liberais da história da humanidade. O ápice do comportamento de Trump se deu no seu inflamado discurso em frente à Casa Branca nesta quarta-feira (6), repleto de acusações sem prova e conclusões infundadas.
Momentos depois, o mundo assistiu a um grupo de manifestantes da base “trompista” invadirem e depredarem a sede do Congresso dos EUA, em Washington, na tentativa de interromper a confirmação da vitória de Joe Biden por deputados e senadores americanos (uma parte meramente formal do processo, frisa-se). O saldo da barbárie foi de quatro mortos e 52 presos, além do claro choque em relação ao comportamento adotado por uma liderança do calibre de Donald Trump.
Se pode ser exagero apontar que Trump foi diretamente responsável pelo ataque ao Capitólio, é inegável dizer que seu silêncio quanto ao ocorrido é praticamente um aceno de cumplicidade. Aliás, vale dizer que muitos congressistas americanos (inclusive, republicanos) buscam responsabilizar o presidente pelas cenas vistas nesta semana – existem chances reais de um impeachment. Caso elas sejam descartadas, será apenas por uma questão de tempo, já que Joe Biden assume a presidência dos EUA daqui a exatamente 11 dias.
Além das marcas permanentes na democracia do que foi a segunda invasão de um Congresso americano em mais de 200 anos, existem alguns desdobramentos interessantes para a política (e economia) americana a serem observados.
O primeiro deles se refere ao próprio Partido Republicano: apesar de Donald Trump não ter sido reeleito, o “trumpismo” continua muito forte nas bases republicanas – prova disso foi a insistência, e até os atos violentos desta quarta, de congressistas da legenda em contestar os resultados eleitorais, acenando para suas bases. Segundo dados recentes de institutos de pesquisa americanos, 80% dos apoiadores de Trump acreditam que o presidente foi o vencedor do pleito de 2020. Ademais, Trump sairá apenas parcialmente dos holofotes, uma vez que dispõe de mídia e de recursos suficientes para continuar politicamente ativo. Por outro lado, a invasão do Congresso foi a gota d’água para algumas figuras importantes do GOP (Grand Old Party, apelido para os republicanos), como o vice-presidente Mike Pence e o líder do partido no Senado, Mitch McConnell, que se levantaram contra Trump.
Em segundo lugar, consolida-se a percepção de que Joe Biden herdará um país profundamente dividido para os próximos quatro anos, o que enfraquece sua agenda governamental, ainda que o Partido Democrata tenha adquirido controle de ambas as Casas Legislativas. Biden precisará efetuar um esforço extra para mitigar a fragmentação política nos EUA – historicamente, um fator que não atrapalha os governos por lá. O ano passado foi marcado por uma série de protestos em território estadunidense, e a tendência é que, independentemente do comando da Casa Branca, isso se estenda nos próximos anos.
Por fim, ainda que o episódio no Capitólio tenha sido excepcional (em termos históricos e políticos), ele é fruto de fenômenos sociopolíticos característicos desse início do século XXI, devendo ser observado de perto – mesmo com a reação mais enérgica das instituições americanas.
Georgia On My Mind
A canção consagrada por Ray Charles e adotada em 1979 como hino oficial do estado da Geórgia foi inúmeras vezes citada em 2020 pelo fato desse território ter virado um swing state nas eleições presidenciais. Não é à toa: na Geórgia, antes de Biden vencer, o último democrata a conquistar os votos do colégio eleitoral foi Bill Clinton, em 1992, e o último senador democrata eleito pelo estado data do ano de 2000.
A Geórgia foi central nas eleições de 2020 nos EUA. Além de ser importantíssima para abrir caminho à vitória de Biden, acabou definindo o controle dos Democratas no Congresso. Recentemente, após o segundo turno das eleições para as duas cadeiras do Senado americano no Estado da Geórgia, os Democratas surpreenderam praticamente todas as projeções e ganharam o controle das duas Casas Legislativas americanas.
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Com a vitória democrata na Geórgia, o Senado fica com a seguinte composição: 50 votos republicanos e 50 democratas (48 do partido e dois senadores independentes, mas que, tradicionalmente, são inclinados à sigla de Joe Biden). Nesse cenário, a maioria, virtualmente, é do partido democrata, já que a lei americana prevê o voto de desempate para a Presidência do Senado, ocupada sempre pelo vice-presidente dos Estados Unidos da América (Kamala Harris).
Logo, com a maioria simples garantida no Senado, Joe Biden terá menos dificuldades em aprovar pautas de seu interesse, uma vez que ambas as Casas Legislativas americanas serão de controle democrata. Vale ressaltar que, tipicamente, a maioria das leis enviadas ao Senado requer somente maioria simples para a sua aprovação, mas estão previstas algumas exceções de caráter fiscalizador, como a derrubada de um veto presidencial (requer dois terços dos votos) ou o equivalente à obstrução da pauta (cloture, no termo original), que enterra o debate na Casa mediante três quintos (60 senadores) dos votos.
Na prática, o quase certo controle total dos democratas na política americana deve facilitar a injeção de mais dinheiro na economia, além de um robusto pacote de projetos de infraestrutura previsto no projeto de governo de Biden – ambas as pautas, agora, com caminho livre para as suas aprovações. Ainda, deve haver pressão maior para revogar alguns dos cortes de tributos efetuados durante o mandato de Trump, o que poderia afetar o lucro de empresas americanas – mas esse movimento deve ficar somente para o pós-pandemia, uma vez resolvidos os imbróglios econômicos decorrentes da depressão de 2020.
Geórgia é um dos estados americanos que pode estar passando por uma transformação demográfica, podendo repetir os resultados para Democratas nas próximas eleições. Sem sombra de dúvidas, o estado vai ficar na mente de grande parte do Partido Republicano.