Desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, os governos sucessores representaram uma guinada na política econômica e adotaram um tom mais reformista – primeiro com Michel Temer e seu mandato provisório e, agora, com Bolsonaro, por meio de seu ministro da Economia, Paulo Guedes.
Adicionalmente, a configuração da legislatura do Congresso no pós-eleições (2018) favoreceu partidos de centro-direita, que abraçaram as pautas econômicas e reformas – em meio a um refugo do petismo e outros partidos de centro-esquerda e esquerda, tanto no Executivo quanto no Legislativo.
Nesse contexto, vimos uma série de medidas positivas sendo aprovadas nestes últimos anos. Entre elas, a reforma da Previdência, a reforma trabalhista, o marco legal do saneamento básico, a desestatização da Eletrobras e uma série de leilões e concessões.
Geralmente, os projetos são apresentados pela equipe econômica e são muito bem recebidos pelo mercado, que fica, posteriormente, acompanhando a tramitação e torcendo para que eles não sejam muito desidratados no Congresso.
Esse não tem sido o caso da reforma tributária, cuja segunda fase foi enviada na última sexta-feira (25) e teve repercussão bastante negativa entre os agentes econômicos. No artigo de hoje, vamos explorar alguns motivos pelos quais o mercado não gostou desta reforma.
A segunda fase trata exclusivamente dos impostos sobre a renda, em três frentes complementares: Pessoas Físicas; Pessoas Jurídicas; e sobre aplicações financeiras. O que o ministério da Economia buscou fazer foi compensar, entre esses segmentos, renúncias e aumentos de tributação para corrigir algumas distorções. Segundo a minuta do Projeto de Lei apresentado, as modificações têm saldo fiscal próximo de zero, não comprometendo as contas públicas.
Mesmo assim, existem problemas considerados nada triviais, que acarretaram reações negativas na bolsa brasileira. O primeiro deles parece bastante claro: a calibragem da reforma. Segundo especialistas da área tributária, a diminuição do IRPJ de 15% para 10% em dois anos –ficando em 12,5% alíquota de 2022 para, apenas em 2023, completar a transição – é muito tímida para a contrapartida de início de tributação sobre dividendos para Pessoas Físicas no percentual de 20%.
Ainda que a tributação sobre dividendos seja uma prática comum em quase a totalidade dos países desenvolvidos (na OCDE, apenas a Letônia replica o modelo brasileiro), a equação parece desigual, levando em consideração que as empresas ainda pagam cerca de 9% de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – na prática, um IR disfarçado – e 10% sobre o excedente de faturamento mensal acima de R$ 20 mil. Em outras palavras, o impacto de uma redução de 5% levaria a carga tributária sobre PJs dos 34% (na teoria, considerando o pagamento máximo de alíquotas) para, aproximadamente, 29%.
Um dos maiores gestores de fundos do Brasil, Luis Stuhlberger, recentemente afirmou que a proposta, do jeito que está, traz um “aumento boçal da carga tributária”. Segundo ele, não há neutralidade – um dos princípios de um sistema tributário ideal – nesse novo tributo sobre dividendos. Existem fortes receios, ainda, que as mudanças para empresas tornem o investimento no Brasil menos atraente, com a tributação sobre o lucro passando – segundo cálculos do tributarista Bernard Appy, também autor da PEC 45 da reforma tributária – dos 34% para cerca de 43%, caso a companhia deseje, de fato, distribuir dividendos.
Outra distorção considerada negativa é o limite imposto para isenção de dividendos em pequenas e micro empresas: em empresas com receita de até R$ 4,8 milhões por ano, o IR será isento até R$ 20 mil por mês. Apesar de parecer justa, a mudança deve gerar distorções no sistema e tornar o sistema econômico menos eficiente, com empresários se organizando para entrar nesse limite e empresas deixando de produzir para evitar pagar mais impostos – um dos erros mais clássicos de desenho tributário, também presente quando o tema é tributação sobre o consumo.
Outra preocupação dos investidores diz respeito ao possível texto final, produto de mudanças efetuadas por deputados e senadores. É verdade que o texto chegou mal calibrado, mas seu apelo eleitoral é altíssimo e, justamente por isso, é de interesse dos congressistas aprovar essa parte da reforma antes de 2022.
O apelo eleitoral consiste, justamente, no aumento da alíquota de isenção de IRPF dos R$ 1.900, aproximadamente, para cerca de R$ 2.500, que deve beneficiar 5,6 milhões de brasileiros que recebem renda neste intervalo. Vale lembrar que o presidente Bolsonaro havia prometido, em 2018, aumentar a faixa de desoneração para até cinco salários-mínimos. Daí, surge o risco de os pontos negativos não serem devidamente tratados e modificados pelos parlamentares, em detrimento da pressa de aprovação do projeto. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é um dos protagonistas dessa tramitação rápida, tendo já designado relator para o texto. A intenção de Lira – que não deve se concretizar, contudo – é aprovar essa etapa da reforma antes do recesso parlamentar, marcado para o dia 17 de julho.
Tendo em vista essa possibilidade, a depender do texto, o projeto passa de um vetor positivo para ser uma ameaça aos setores econômicos. Como pode-se observar, nem sempre o avanço de uma reforma é positivo – esse é, inclusive, um dos mitos a serem combatidos no mercado financeiro, já que muitas vezes o resultado pode representar, sim, retrocessos para a economia.
Colateralmente, o mercado também não gostou do fato de a segunda fase ser enviada após um ano completo desde o envio da primeira fase, que não obteve, até agora, nenhum avanço. A bem da verdade, tolerou-se o fatiamento da reforma justamente porque investidores têm confiança no trabalho da equipe econômica e esperam propostas razoáveis.
Quando o texto veio, acabou desanimando os investidores. Parte do mercado continua questionando por que outras reformas – mais completas, abrangentes e enviadas anteriormente – não prosperaram. A resposta é uma só, a despeito das teorias de que o Executivo não gostaria de aprovar um texto que não fosse originalmente enviado por ele: o atual governo não quer se indispor com alguns setores da economia brasileira, que são contra uma reforma mais ampla sob a justificativa de que serão mais onerados. De fato, alguns serão, mas o que não se comenta é que, atualmente, esses grupos gozam de uma série de privilégios dentro do desenho atual de tributação.
É a velha história do rent-seeking, com alguns grupos de interesse conseguindo influenciar processos políticos em detrimento da sociedade como um todo. A esta altura do campeonato, é certo que alguns players econômicos já preferem que o texto seja arquivado e só volte após a definição de um novo ciclo eleitoral, em 2023.
Nosso cenário-base é de algum avanço tímido de uma das frentes da reforma – muito provavelmente, a parte de renda – nos próximos meses, mas sem aprovação, em definitivo, da matéria. Pela reação do mercado, a tramitação deve começar apenas em meados de agosto ou setembro, com interlocutores negociando novos ajustes ao texto para tentar deixá-lo menos descalibrado.
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