Na coluna de hoje, vamos aproveitar o clima natalino para trazer um debate mais abstrato, mas fundamental para compreender o Brasil político do resto do século XXI. Quando se fala sobre o sistema político brasileiro, é quase unânime o diagnóstico de que a hiperfragmentação partidária é um dos elementos que prejudicam seu bom desempenho.
Em meados de 2015, o Brasil passava por uma forte crise econômica e política. A depressão econômica e a inflação elevada atingiam milhares de casas, ao mesmo tempo em que eclodiu um enorme senso de esgotamento político – em meio a novos escândalos de corrupção e a um forte distanciamento entre a população e aqueles eleitos para representá-la.
Nesse contexto, o momento de crise também virou o momento de soluções práticas, fáceis, rápidas – e também perigosas. Muitos projetos foram levantados nessa época, sob a bandeira de que era necessário realizar uma reforma política no País. Surgiram algumas iniciativas bem intencionadas, mas descoladas da realidade brasileira; e outras, contudo, que eram verdadeiros cavalos de Tróia que, ao cabo, beneficiariam mais a classe política vigente do que os milhões de descontentes com o nosso sistema representativo.
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A verdade é que efetuar uma ampla reforma política é tarefa difícil, até pela reticência daqueles que já estão no poder – e que, logicamente, chegaram lá no sistema vigente. Desde os anos 2000, só no Brasil já houve seis tentativas de promover uma série de mudanças políticas, todas sem sucesso. A literatura especializada mostra que reformas políticas e/ou eleitorais, majoritariamente, foram feitas em um intervalo de tempo bastante largo, de maneira lenta e gradual. É sempre pertinente usar a metáfora do transatlântico a ser manobrado: por conta de seu tamanho e rigidez, uma mudança de direção é demorada e passa, muitas vezes, despercebida.
Não obstante todo o furor envolvendo uma reforma política mais ampla no Brasil, projetos foram aos poucos perdendo força por uma série de divergências entre os próprios parlamentares. Entretanto, entre 2015 e 2017, foram aprovadas algumas novas regras eleitorais como fruto desse conturbado processo. Uma delas – o fim das coligações em eleições proporcionais (para cargos do Legislativo) – passou a valer nesta última eleição municipal. A regra mais importante, porém, já esteve em voga nas últimas eleições presidenciais e tem potencial para transformar o sistema político brasileiro no médio para longo prazo. Popularmente conhecida como cláusula de barreira, a cláusula de desempenho partidário pode reduzir substancialmente a quantidade de legendas no jogo político do País.
Essa regra consiste, basicamente, em uma mudança no cálculo dos deputados e vereadores eleitos pelo sistema proporcional – sistema em que as cadeiras são distribuídas de acordo com o quociente eleitoral para que cada lista partidária receba proporcionalmente a quantidade justa de cadeiras –, estabelecendo um limite mínimo para que as siglas possam ter acesso a elementos fundamentais para a atividade partidária.
Vale lembrar que uma cláusula de barreira já havia sido aprovada em 1995 pelo Congresso Nacional, mas, em 2006 – ano em que entraria em vigência –, foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, sob a justificativa de que pequenos partidos políticos seriam prejudicados. O texto mais recente aprovado traz alguns avanços importantes, mas segue a mesma linha do projeto da década de 90. Está no texto da Emenda Constitucional 97, de 2017, a regulamentação da nova cláusula de barreira.
Nessa emenda, passa a vigorar o veto aos recursos do recurso partidário e o acesso gratuito à propaganda de rádio e televisão para aquelas legendas que não “obtiverem nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo 3% dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 2% dos votos válidos em cada uma delas”, ou, alternativamente, não tiverem elegido pelo menos quinze deputados federais em pelo menos um terço das unidades da Federação.
Para garantir uma transição mais suave a essas regras, foi definido que esses percentuais e valores iriam avançando gradativamente nas eleições de 2018, 2022 e 2026 até atingirem os níveis proposto (em 2030). Na tabela abaixo, compilamos as regras necessárias, de acordo com cada ano eleitoral, para superar a cláusula de barreira:
Em 2018, nas últimas eleições de âmbito federal, a cláusula de barreira funcionou pela primeira vez e teve efeito modesto, mas importante para evitar mais um passo no caminho da hiperfragmentação partidária: com o mecanismo, foram impactadas 9 das 30 legendas que elegeram deputados federais, já não tendo direito a recursos do fundo partidário e nem tempo de propaganda eleitoral para as eleições de 2022.
Para não cometer injustiças com os deputados eleitos em legendas que ficarão de fora da cláusula de barreira, a EC 97 permite que esses congressistas mudem de partido sem prejuízo para seu mandato.
Nesse contexto, algumas siglas já buscaram “proteção” ao se fundirem com outros partidos: o PHS (6 deputados eleitos) foi incorporado pelo Podemos, o PRP incorporou-se ao Patriota – com a fusão, o Patriota conseguiu atingir os requisitos da cláusula – e o mesmo ocorreu com o PPL, que se incorporou ao PCdoB para atingir a cláusula de barreira. Atualmente, estão representados 24 partidos na Câmara dos Deputados.
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Mais recentemente, um estudo feito pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) baseou-se nas votações em candidatos a vereador de cada partido nas eleições de 2020 para concluir que, caso houvesse cláusula de barreira no âmbito municipal, apenas 18 dos 33 partidos registrados no TSE atingiriam o patamar mínimo da cláusula de barreira (porcentagens de 2022).
Com base nos dados disponibilizados pelo TSE, chegamos a uma conclusão parecida: caso as regras de cláusula de barreira para 2022 já tivessem sido aplicadas nas eleições municipais de 2020, somente 17 partidos teriam superado os limites mínimos necessários. Nesse caso, não seria possível prever a quantidade de deputados eleitos, uma vez que o pleito de vereadores tem um número muito maior de eleitos. O que se pode tirar de aprendizado, contudo, é que apenas 14 legendas têm margem confortável (no mínimo, 2,5% do total de votos) para a cláusula das eleições que vem, enquanto 4 legendas perigam não conseguir atingir a cláusula e o restante (17) parece longe de conseguir obter recursos de fundos partidários e tempo de TV para 2022 em diante. Veja na tabela abaixo:
Evidentemente, do ponto de vista político, essa eventual redução de partidos representados na Câmara já em 2022 – e, gradualmente, seu avanço até 2030 – é bastante positiva para o sistema como um todo. Por outro lado, partidos recém-fundados, como a Rede e o Novo, terão dificuldades cada vez maiores nas próximas eleições.
Da mesma forma, partidos nanicos e de natureza fisiológica – PMN, DC, PRTB, entre outros – já vêm pressionando pela revogação da cláusula de barreira no Congresso Nacional. Esse deve ser um movimento que ganhará mais força nos próximos anos, em meio à tentativa de sobrevivência de muitas siglas. Logo após as eleições municipais de novembro deste ano, partidos pequenos e médios já ensaiaram um movimento para, pelo menos, tentar promover a volta das coligações proporcionais a partir das próximas eleições – tal possibilidade aumentaria as chances de essas siglas atingirem o mínimo necessário para ter direito aos recursos partidários.
Não obstante essa pressão que deve aumentar a partir de 2021, é essencial que o Congresso Nacional resista voltar atrás de qualquer das regras estabelecidas nos últimos anos. É hora de barrar de vez o fisiologismo nas Casas Legislativas brasileiras e, indiretamente, forçar uma aproximação dos partidos com eleitores, por meio de ideias e visões programáticas mais definidas.