Política sem Aspas, por Felipe Berenguer

O desafio do teto – parte II

Na primeira parte dessa dupla de textos, concentrei-me em elencar e dissertar acerca das principais regras fiscais em voga hoje no Brasil. Naquela ocasião, deixei antecipado que a coluna do fim de semana traria uma análise mais aprofundada da atual mãe de todas as regras fiscais – a Emenda Constitucional N° 95, também conhecida como teto de gastos.

Olhando mais a fundo para a EC 95, pode-se destacar alguns componentes interessantes dela. O primeiro deles diz respeito à natureza principiológica da Emenda: no primeiro artigo, é estabelecida a instituição do “Novo Regime Fiscal, com limites individualizados para despesas primárias”, estabelecendo, desde o início, o que nós conhecemos como teto de gastos.

Vale ressaltar, também, que esse limite para as despesas fica estabelecido de acordo com o montante orçamentário do exercício imediatamente anterior, além do acréscimo máximo, de acordo com o IPCA – medidor oficial da inflação no País –, de novas despesas, com retroativo de 12 meses. Aqui, uma curiosidade que muitas vezes passa despercebida pelos analistas: como a Lei de Diretrizes Orçamentárias deve ser entregue até o dia 31 de julho, o IPCA utilizado para efetuar o cálculo do teto data de julho do ano anterior até junho do ano de entrega da LDO.

Ainda, a EC 95 versa sobre o tão comentado acionamento dos gatilhos em caso de descumprimento do limite estabelecido para o exercício orçamentário. Ao mesmo tempo, porém, a emenda não permite que seja enviado um projeto de orçamento que preveja dispêndios acima do teto. Na prática, isso significa que o rompimento do teto não poderia, em matéria legal, ser “antecipado”, ou seja, o próprio governo fica impossibilitado de admitir que vai gastar mais que o previsto, limitando o poder e o timing do acionamento dos gatilhos. Em outras palavras, seria necessário ter uma situação em que, no meio do exercício orçamentário, se rompesse o teto para que, somente então, os gatilhos fossem acionados.

Independentemente dessa incongruência, que acabou passando impune na hora da redação da Emenda, o acionamento dos gatilhos acarretaria as seguintes medidas restritivas sobre as despesas sujeitas ao teto: aumento de despesas com pessoal de qualquer natureza; criação de cargos; concessão de reajustes salariais ou sobre benefícios; realização de concurso público; e criação de despesa obrigatória.

O racional, por trás desses gatilhos de congelamento de gastos, seria permitir que o governo voltasse ao teto, por meio da estagnação de despesas, à medida que houvesse novos reajustes por meio da inflação. Enquanto não se chegasse a esse patamar, haveria um “regime especial” das contas públicas, estando as despesas sujeitas não mais ao teto, já rompido, mas sim aos gatilhos. Infelizmente, segundo o texto aprovado, o acionamento de gatilhos não implicaria, necessariamente, na redução de despesas – hoje, o maior desafio da economia brasileira.

A discussão fica academicamente mais densa a partir daqui. Isso, porque existem, atualmente, duas correntes divergentes sobre um eventual acionamento dos gatilhos. A bem da verdade, nem todas as despesas do Orçamento, como a própria EC 95 diz, estão sujeitas ao teto. Em outras palavras, segundo uma das linhas de interpretação sobre o acionamento dos gatilhos, enquanto uma parte dos gastos seria eminentemente congelada, a outra poderia ficar ainda mais flexibilizada – já que o limite do teto não estaria mais vigente e, por outro lado, os gatilhos não a contemplaria.

Dessa visão, compartilham os economistas do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Ibre/FGV), que, inclusive, já abordaram formalmente a questão por meio deste artigo, encabeçado pelo economista Manoel Pires. No artigo, Pires ressalta que, hoje, 95% do total das despesas são afetadas pelo teto de gastos. Com os gatilhos, esse número (contando despesas afetadas e parcialmente afetadas pelo acionamento) cairia para 73%.

Do outro lado da moeda está a visão da Instituição Fiscal Independente (IFI), liderada pelo economista Felipe Salto, cujo raciocínio entende que o acionamento dos gatilhos seria complementar ao Novo Regime Fiscal, na medida em que o intuito primo da EC 95 é de reduzir o endividamento e o crescimento de despesas, logo, sob essa premissa, outros gastos não poderiam ser expandidos ainda que não estivessem no rol de dispêndios sujeitos ao teto.

Diante desse embate de natureza técnica e acadêmica, e dado o ineditismo desta regra fiscal (vigente, apenas, desde 2017), fui atrás de outras fontes para buscar desvendar qual é a interpretação mais crível sobre a EC 95. Nesse contexto, me deparei com o artigo do diretor da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, Ricardo Volpe: Repercussões da Emenda Constitucional n° 95/2016 no processo orçamentário.

Com certo distanciamento da discussão atual, afinal, o texto data de maio de 2017, Volpe entende que o entendimento mais lógico para a questão da execução de despesas após o acionamento de gatilhos é abrangente (visão também da IFI), e não restritiva (como prega o Ibre/FGV). Segundo ele, exclusões do limite e vedações, em caso de descumprimento, são institutos autônomos e com finalidade distinta e, mais ainda, as exclusões dos gastos – caso das transferências constitucionais para o Fundeb, créditos extraordinários, entre outros –  compõem lista fechada e, portanto, sem possibilidade de interpretação extensiva referente ao teto.

Volpe finaliza esclarecendo a real finalidade do teto de gastos e o que deve ser feito em caso de descumprimento dessa regra: “96. No caso de identificação de insuficiência orçamentária, é dever jurídico dos respectivos responsáveis pelos Poderes e Órgãos adotar todas as medidas necessárias à conformação do gasto ao teto, seja reduzindo despesas discricionárias ou adotando restrições à expansão das obrigatórias, como as previstas no art. 109 do ADCT. Ou, em última hipótese, pela revisão da legislação condicionante do gasto do Poder ou Órgão, para que a respectiva despesa primária venha a caber nos limites.”

Dito isso, talvez, o maior consenso entre os economistas envolvidos nos debates sobre as finanças públicas brasileiras seja de que é preciso olhar com preocupação para a atual situação orçamentária de 2021. Há aqueles, a exemplo da IFI, que defendem o acionamento dos gatilhos para restringir as despesas em um primeiro momento e, com isso, estender melhor o debate estrutural (sobre o nosso Orçamento Público) ao longo de 2021. Daí, surgiriam reformas mais maduras e adequadas à realidade das contas públicas do País. Segundo os economistas do órgão, “Uma vez acionados, os gatilhos produziriam um ajuste de cerca de 0,5 p.p. do PIB, em dois anos, pelas contas da IFI. Isso daria tempo, inclusive, para que o Congresso e o Poder Executivo endereçassem eventuais discussões e alterações no arcabouço vigente, se assim desejassem.”

Decerto, o teto de gastos está ameaçado. Por questões políticas, ao que tudo indica, o Planalto preferirá adiar esse dilema para meados de dezembro, fato que, invariavelmente, vai jogar para o início de 2021 qualquer resolução, que deve passar, também, pelo crivo de deputados e senadores. 

Para apimentar ainda mais o enredo, está marcada para fevereiro do ano que vem a eleição das Casas Legislativas, podendo o protagonismo dos pré-candidatos às cadeiras contaminar o debate dos gastos públicos. Ao mesmo tempo, como já falei por aqui em outras ocasiões, o trauma político-econômico decorrente de 2015 e 2016 evita que a gastança se torne ilimitada. Ironicamente, a ameaça de rompimento do teto pode ser a força motriz para uma resolução visando manter a responsabilidade fiscal neste País – a diferença entre o remédio e o veneno está sempre na dose. Até lá, o Brasil segue despreocupadamente, como disse Luís Stuhlberger, em 2015, nas famosas páginas amarelas da revista Veja, flertando com o abismo.

Um abraço,

Felipe Berenguer
[email protected].br

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