Na coluna de hoje irei falar do declínio da cervejaria Ambev. Essa ação já foi a queridinha da Bolsa, a líder no mercado de cervejas e uma referência em termos de retorno sobre o capital investido (ROIC).
Minha abordagem será mais qualitativa, com foco na força das vantagens competitivas da Ambev, com utilização de exemplos e histórias sobre futebol, cerveja e mercado de ações. Abra uma cerveja artesanal gelada e aproveite a leitura.
Brahma: a cerveja número 1
O auge da Brahma foi nos anos 90, quando o jingle: “pediu cerveja, pediu Brahma Chopp, Brahma a cerveja número 1!”.
Eu me lembro muito bem da Copa do Mundo de 1994 nos Estados Unidos. O ataque da Seleção contava com nada menos do que Bebeto e Romário. E cada gol era comemorado com o dedo para cima, imagem da cerveja número 1, que era patrocinadora da seleção. Faltou o gol do Romário na final da Copa contra a Itália que foi vencida nos pênaltis (o clássico GIF do Galvão Bueno: “é tetra!”).
Início do Plano Real em 1994, a década foi marcada pela guerra das cervejarias, tanto no futebol quanto no Carnaval: Brahma versus Antarctica.
Ambev: crescimento através de aquisições
A Ambev fez quatro grandes aquisições na sua história: 1) a Brahma comprou a Antarctica em 1999 e formou a Ambev; 2) a Ambev fundiu-se com a belga Interbrew (Stella Artois) em 2004; 3) a empresa comprou a americana Anheuser-Busch (dona da Budweiser) em 2008, formando a Ab Inbev e; 4) a Ab Inbev aquisição da SABMiller, cervejaria anglo sul-africana em 2015, a segunda maior do mundo.
Deixei de lado a aquisição de cervejarias menores em países da América do Sul: Uruguai (Nortena), Peru (Cusquena), Argentina (Quilmes) e; América Central (República Dominicana, cerveja Presidente).
A Inbev, dona da Ambev no Brasil, se tornou a maior produtora de cerveja do mundo, respondendo por 29,8% da produção mundial, com a holandesa Heineken em segundo lugar com 12,3%.
O que aconteceu a Ambev?
Vou explicar o que provocou o declínio da Ambev ao longo do tempo, como as suas tradicionais cervejas Brahma, Skol e Original, as “cervejas de milho”, foram perdendo espaço para a sua concorrente direta Heineken e para as cervejas artesanais, que começaram a ganhar mercado nos Estados Unidos em 2007 e no Brasil a partir de 2010.
Em resumo, a derrocada da Ambev pode ser explicada por três motivos: envelhecimento da população, mudanças nos hábitos do consumidor e aumento da concorrência. Em outros palavras, o fosso do castelo (Moat) foi perdendo a sua efetividade em termos de vantagens competitivas.
Vantagens competitivas (Moat)
A Ambev tirava notas altas em três vantagens competitivas distintas: poder de marca, vantagem de custo e logística distribuição.
No início da década de 2000, após a aquisição da Antarctica pela Brahma, a Ambev ficou com as marcas mais valiosas de cerveja do Brasil (Brahma, Antarctica, Skol, Original, Bohemia, Serramalte, entre outras). Ela teve que se desfazer apenas da marca Bavária (cerveja dos amigos), ficando com mais de 70% de participação de mercado no Brasil.
Durante os anos 2000 o poder dea marca da Ambev era muito forte. Sua participação de mercado muito maior que a das concorrentes Heineken e Petrópolis (dona da Itaipava), o que garantia à Ambev o poder de repassar preço aos consumidores.
Devido ao tamanho das suas fábricas, com muito mais capacidade de produção, a companhia sempre teve uma enorme vantagem nos custos de produção. Tamanho e escala são determinantes para as vantagens de custo da Ambev.
Por último, a companhia possui mais de 1 milhão de pontos de venda espalhados pelo Brasil, uma tremenda vantagem em termos de logística.
Efeito demográfico
Esse é o primeiro motivo para o declínio da Ambev. A população brasileira na faixa etária entre 20 e 24 anos, que concentra a maior parte do público consumidor de cerveja, tem apresentado baixo crescimento anual: inferior a 0,5% ao ano entre 2015 e 2019, com perspectiva de queda a partir de 2020. Este crescimento era o quase o dobro, cerca de 1% ao ano entre 2000 e 2010.
Mudança de comportamento
Antigamente, na década de 90 e no início dos anos 2000 não existiam smartphones, aplicativos de comunicação como whatsapp, redes sociais como Facebook, Instagram e Tinder.
Naquela época, os jovens socializavam nos happy hours, frequentando bares e saindo à noite com amigos nas baladas e casas noturnas. Não existiam aplicativos para facilitar encontros entre as pessoas e não existia um monte de marmanjos na rua caçando pokemons.
Antigamente cerca de 60%-65% do volume de cerveja era vendido nos estabelecimentos (“on-premisses”) e os 40%-35% restantes nos supermercados.
Quem estava no happy hour não estava muito preocupado com o preço da cerveja devido ao aspecto social do evento (colegas de empresa, amigos ou namoradas), enquanto no supermercado somos muito mais racionais em relação aos preços.
Com os aplicativos, as pessoas passaram a frequentar menos bares e casas noturnas, começaram a socializar através de redes sociais e aplicativos, fazendo “dates” em casa. Assim, a compra de cerveja nos supermercados ganhou importância e passou a representar de 40% a 45% das vendas das cervejarias.
Uma mudança complicada para a Ambev, pois no supermercado a concorrência com as outras marcas é maior, e aumenta a competitividade das cervejas artesanais, distribuídas por meio de aplicativos de entrega.
Além disso, o endurecimento da fiscalização da lei seca esvaziou os bares e baladas, com fiscalização e punição para quem bebe e dirige (um crime).
Palavras de Jorge Paulo Lehman, um dos fundadores da Inbev: “eu sou um dinossauro apavorado, a Ambev está sofrendo disrupções de todos os lados com as mudanças nos hábitos do consumidor”.
O poder da marca da Ambev diminuiu e a empresa não tem o mesmo poder de repassar preço para as suas cervejas no supermercado. Esse “pricing power” era a mola mestra para o retorno superior sobre o capital investido da companhia.
Foco em cortes de custos
No seu processo de crescimento por meio de aquisições, a companhia sempre teve muito foco na redução de custos, mesmo que para isso tivesse que substituir os ingredientes da cerveja: troca do malte por milho e/ou arroz e trocar o lúpulo por conservantes químicos.
Essa fórmula de sucesso de corte de custos funcionou muito bem enquanto a companhia fazia suas aquisições e tinha poder de marca ainda não afetado pela concorrência. Agora a Ambev não tem mais como adquirir ninguém e parece não ter a mesma eficiência no crescimento orgânico.
Queda no retorno do capital investido (ROIC)
Na época de ouro da Ambev o retorno sobre o capital investido (ROIC) da companhia atingia 40% ao ano, bem superior ao seu custo médio ponderado de capital (WACC). Atualmente o ROIC da Ambev está na faixa dos 32%-33% ao ano.
Conclusão: a vida é muito curta para beber cerveja de milho
Antigamente um baldinho de cerveja Original no boteco era símbolo de status e cerveja de qualidade. Foram os anos de ouro da Ambev em termos de rentabilidade.
Hoje em dia a concorrência é feroz, com oferta de diversas marcas e tipos de cerveja. A Ambev até entrou no jogo das cervejas artesanais, com a compra da Waals, da Colorado, de Goose e da Hoegarden. Mesmo assim, ela está perdendo participação de mercado para a Heineken e para a Nova Petrópolis.
As marcas tradicionais de “cerveja de milho” representam cerca de 75% do volume de cerveja produzido pela Ambev no Brasil. Assim, acredito que a rentabilidade da Ambev vai continuar pressionada por: aumento da concorrência, enfraquecimento do poder da marca e crescimento das cervejas artesanais.
A participação da Ambev no mercado de cerveja foi reduzida de cerca de 68% no auge para cerca de 62,3% em 2018 e para 60,8% em 2019, comparado a 20,6% da Heineken e a 14,6% da Nova Petrópolis.
Ressalto que esse declínio não foi ainda maior devido ao poder da rede de distribuição de logística de cerveja da Ambev.
Por último: quem experimenta uma cerveja artesanal de alta qualidade a preços competitivos, dificilmente volta para uma cerveja de qualidade inferior.
Agora eu vou abrir uma cerveja do tipo IPA (mais amarga e sem milho) de fabricação própria!
Bom domingo a todos
Um abraço
Eduardo.
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