Política sem Aspas, por Felipe Berenguer

Reforma administrativa: saindo da estaca zero?

Por que tanto se fala em reformas no Brasil? A resposta é simples: temos uma democracia bastante jovem e uma Constituição que é fruto de uma reabertura democrática e, portanto, construída em cima de grandes consensos e preocupações. Em outras palavras, somos um país novo e cujo Estado (com E maiúsculo mesmo) ainda peca para entregar ao cidadão todas as atribuições que lhe foram, em 1988, concebidas.

Naturalmente, não existe um modelo perfeito de Constituição. O espaço comum nos faz crer que a Constituição americana, o Bill of Rights (1789), é o modelo ideal. Sucinta, direta e pétrea. Ignora-se, porém, os elementos que levaram à construção dela, assim como as gritantes diferenças entre o modelo federalista americano e o brasileiro. O debate é complexo, e, após pouco mais de 30 anos, dificilmente veremos uma nova Constituinte em um horizonte próximo.

Nesse contexto, resta modificar a nossa Constituição para resolver problemas que apareceram ao longo do tempo. Problemas complexos, que apareceram por descuido ou por erro de cálculo – a essa altura, pouco importa –, mas que requerem soluções igualmente complexas, para que o Estado brasileiro se torne, de pouco em pouco, mais eficiente. Não há nada de errado neste caminho; na teoria da administração pública, o aprimoramento constante de leis e políticas públicas é conhecido como “incrementalismo”.

As reformas vão ao encontro do caminho disposto acima. Diante de disfuncionalidades (econômicas, sociais, administrativas – multifacetadas) criadas a partir do novo desenho institucional brasileiro e seu arcabouço jurídico, hoje nos deparamos com a necessidade de promover reformas profundas no Estado. Foi o caso da reforma previdenciária, é o caso da reforma tributária e da reforma administrativa.

Àqueles que querem entender um pouco mais das nuances envolvendo os custos e retornos da administração pública brasileira – ou a ineficiência do Estado –, recomendo a leitura destes dois artigos que escrevi no fim do ano passado: parte I e parte II. Um bom resumo, porém, é feito pelo jurista Carlos Ari Sundfeld: “O Brasil tem problemas sérios na administração pública. Um deles está nos recursos humanos. Há desigualdades absurdas entre categorias de servidores. Há carreiras demais. Também faltam estímulos ao bom desempenho. Por isso, a produtividade é baixa. As despesas são incontroláveis. Os serviços sociais, como educação e saúde, são precários. E a confusão jurídica é atordoante.”

Logo, no artigo de hoje, vou trazer algumas considerações iniciais sobre a mais recente reforma enviada pelo Executivo ao Congresso: a reforma administrativa, também denominada reforma do RH do setor público.

Pegando muitos de surpresa, o presidente Bolsonaro anunciou, na última segunda-feira (31), que a reforma administrativa do governo chegaria à Câmara e ao Senado na quinta-feira (3). Após ter recuado no envio algumas vezes, o Planalto desta vez cumpriu com sua palavra. A PEC 32/2020 chega à Câmara baseada em quatro princípios: a) foco em servir; valorização dos servidores; c) agilidade e inovação; e d) eficiência e racionalidade. Os princípios são corretos, baseados no diagnóstico correto do setor público, feito pela equipe econômica. Na apresentação oficial da PEC, o ministério da Economia bem pontuou a insustentabilidade do cenário atual: nos últimos 12 anos, a despesa com pessoal civil ativo do Executivo Federal aumentou 145% (de 44,8 bilhões de reais para 109,8 bilhões). O sequestro dos gastos para direcioná-los ao pessoal, no limite, gera perda de capacidade de investimento e falta de recursos para manutenção de serviços básicos.

No modelo da PEC, o governo reformula as carreiras e cria cinco novos tipos de vínculo com o setor público, com diferentes regras sobre estabilidade, além de estabelecer uma nova forma de ingresso e processos seletivos para cargos de liderança e assessoramento. A proposta deve valer para os três Poderes e todos os entes federativos, mas cabe aos outros Poderes promover as mudanças – por isso, juízes, magistrados e políticos, entre outras categorias da elite do funcionalismo, infelizmente não serão atingidos pela reforma.

Ainda, a proposta põe fim aos penduricalhos (licenças e gratificações extras) e a férias superiores a 30 dias/ano e também facilita a alocação de servidores públicos dentro do governo. Além disso, a PEC foca a contratualização de resultados e concentra maiores poderes na mão do Presidente da República, que poderá – não havendo aumento de despesa – extinguir cargos, funções e gratificações, reorganizar autarquias e fundações e extinguir órgãos da Administração Indireta. Vale ressaltar que a PEC deve valer somente para novos ingressantes na máquina pública, não mexendo com as regras atuais de quem já trabalha na União, nos Estados e nos municípios.

Segundo o texto, os cinco novos tipos de vínculo são: vínculo de experiência, cargo com vínculo por prazo indeterminado, cargo típico de Estado, vínculo de prazo determinado e cargo de liderança e assessoramento. Nos três primeiros tipos, o ingresso será feito por concurso público; para as outras duas modalidades, o vínculo de experiência é estágio inicial. Já nos casos do vínculo de prazo determinado e do cargo de liderança, a contratação poderá ser feita por seleção simplificada. De qualquer forma, deixa de existir o regime jurídico único e, assim, espera-se que o único grupo que deve manter a estabilidade (cargo típico de Estado) represente, no futuro, 20 por cento do total de servidores.

Nos outros casos, a ideia geral é sempre que o período de “teste” (em que se pode demitir, antecedendo a estabilidade) do servidor seja maior que no cenário atual, no qual o estágio probatório é de três anos e são raríssimos os desligamentos (de 2016 até junho de 2019, apenas 0,4% foram desligados no estágio probatório). Na verdade, a reforma do Estado (de 1998) previu a exoneração por mau desempenho, mas esta nunca foi regulamentada; assim, dos 7.766 servidores públicos federais expulsos desde 2003, nenhum foi por mau desempenho.

Outro ponto importante, mas polêmico, é o de reduzir o salário de entrada das carreiras e ajustá-lo por meio de planos de carreira eficientes e que recompensem o servidor com bom desempenho e produtividade. De um lado, alguns quadros de Brasília entendem que essa medida vai levar à fuga de cérebros do quadro técnico, mas, de outro, argumenta-se que é necessário equiparar os salários de entrada à realidade da iniciativa privada, até para melhor se desenhar uma progressão de carreira.

Do lado negativo, os principais destaques são: a manutenção dos privilégios dos atuais servidores; a possibilidade de extinção de órgãos e ministérios pelo presidente sem o aval do Congresso; o fato de a proposta ser abrangente demais e não estimar nenhum tipo de economia de gastos; e a necessidade de envio posterior de 7 Projetos de Lei (2 PLCs e 5 PLs) regulamentando temas fundamentais, como gestão de desempenho, consolidação de cargos, funções e gratificações, arranjos institucionais e ajustes no Estatuto do Servidor.

No caso dos destaques positivos, é possível mencionar: o diagnóstico preciso dos principais entraves das carreiras no setor público; a iniciativa robusta de modernização dos métodos de ingresso, seja o concurso público ou outro método de seleção; o fim do estágio probatório, em detrimento da criação do vínculo de experiência; a flexibilização de cargos e do trânsito entre profissões dentro da administração pública; a eliminação de inúmeras distorções remuneratórias e de carreira; e a iniciativa de regulamentar a insuficiência de desempenho.

A reforma não é nenhuma bala de prata, mas – emprestando as palavras do executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado, Felipe Salto – “é um passo na direção correta”. Ao contrário do esperado pelo mercado, porém, as economias decorrentes da reforma serão percebidas somente no longo/longuíssimo prazo, já que o atual quadro de servidores fica de fora da reforma. Para corroborar com a frustração de alguns, o envio de uma PEC “preliminar” – mais genérica – também atrasa o processo, que agora dependerá do envio posterior de outros projetos de lei. No entanto, quem acompanha esta coluna sabe das projeções conservadoras que fiz sobre a reforma administrativa. Com a estratégia atual do governo, é muito provável que um desfecho da reforma fique para o mandato 2023-2026 – não importando quem seja o presidente.

Sob uma análise mais política, torna-se realidade aquilo que já era muito provável: Bolsonaro não iria comprar briga com os servidores públicos, classe muito bem organizada e de peso no Congresso. Além disso, o envio da reforma teve como objetivo remediar a saída do ex-patrono do tema, Paulo Uebel, do ministério da Economia. Na prática, porém, ainda há um longo caminho a ser percorrido. Assim como ocorreu com a reforma da Previdência, o tema necessita de maturação e muita discussão entre as partes.

Os mais pessimistas argumentam que, nesse assunto, ainda estamos na estaca zero. A proposta do governo seria demasiadamente genérica, não mexeria com os problemas e ainda criaria outras novas dificuldades. Apesar de entender o racional embutido nessa crítica, não consigo pensar dessa maneira. A política é a arte do possível; e o governo, seja porque ficou refém desse caminho ou por entender que essa é a melhor saída, optou por adotar uma estratégia menos agressiva. O custo disso está reservado para o futuro. O pontapé inicial e formal sobre o debate de uma reforma administrativa, contudo, é importante. Resta saber se o compromisso do Executivo em fomentar as discussões será real, ou se o envio foi só para inglês (ou seria para os investidores?) ver. Não estamos mais na estaca zero, mas acabamos de sair dela.

Um abraço,

Felipe Berenguer
[email protected].br

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