“Por una cabeza, Si ella me olvida
Que importa perderme, Mil veces la vida
Para que vivir…”
Conheci o tango argentino assistindo um drama americano. Dessas ocasiões em que, nunca antes sido apresentado, logo se desperta um misto de curiosidade e encantamento pelo novo gênero: violinos, violões, outras cordas, por vezes um piano ou uma sanfona, juntos, transmitindo uma melodia apaixonada, dramática e, inevitavelmente, triste.
O filme era “Perfume de Mulher”. A cena: Al Pacino, no papel de um tenente-coronel cego, convida a bela Donna, interpretada por Gabrielle Anwar, para um memorável tango. A trilha sonora de um dos momentos mais reproduzidos na história cinematográfica é também um dos tangos mais famosos da história: “Por Una Cabeza” do francês (ou uruguaio? ninguém sabe ao certo) radicado em Buenos Aires, Carlos Gardel.
Não seria exagero colocar o belo tango como trilha sonora para o momento que a Argentina atravessa neste momento. Há uma expectativa enorme com relação às eleições presidenciais, que ocorrerão no próximo mês de outubro. Enfrentando grave crise econômica, o povo argentino se depara diante da difícil encruzilhada: dobrar a aposta, elegendo o governo Macri, ou voltar ao kirchnerismo, que governou por 12 antes até o governo ser eleito.
Um tango diferente
O governo Macri tomou posse no fim de dezembro de 2015, pondo fim ao período kirchnerista, marcado por forte presença estatal na economia e pouca transparência nas contas públicas e dados econômicos. O modelo de Macri era exatamente o oposto de seus antecessores. Apesar da margem estreita de eleição (o ex-prefeito de Buenos Aires venceu com 51,4% dos votos válidos), o sufrágio liberal animou os investidores argentinos.
O início do governo visava um objetivo. Fazer com que a Argentina recuperasse um razoável rating para voltar a receber grandes investimentos internacionais. Tal fato não acontecia desde que o país deu calote na dívida em 2001. Assim, logo nas primeiras semanas, Macri derrubou o “cepo cambial” – série de restrições à compra de dólar – instituído por Cristina e realizou um aperto fiscal, na tentativa de reverter o quadro deficitário das contas públicas.
Bailando na curva
No entanto, a retirada do cepo cambial levou à desvalorização do peso argentino frente ao dólar, acarretando um aumento de preços no país (a economia argentina é altamente dolarizada) na tentativa de aumentar a arrecadação. Evidentemente, o aumento no preço de serviços públicos trouxe insatisfação à população. Segundo economistas argentinos, o aumento das taxas era necessário, mas a velocidade da mudança acabou gerando inflação no país – veja tabela abaixo.
Ainda buscando implementar uma mudança na política econômica do país e garantir, ao mesmo tempo, crescimento econômico, Macri pode ter ido com muita sede ao pote. O fato é que o presidente encontrou inúmeras dificuldades inesperadas para a retomada econômica e, no meio de seu mandato, perdeu apoio de sindicatos e outros setores importantes. Além disso, ficava cada vez mais difícil pagar as dívidas argentinas – uma vez que grande parte da dívida é externa. Nesse contexto, crescia a insatisfação com seu governo e as incertezas no mercado.
De 2017 para cá, Macri vem batalhando para atrair os tão sonhados investimentos, por meio de aumento da taxa de juros (ver tabela acima). A ideia é combater a inflação e a desvalorização do peso argentino (ver tabela abaixo). Do lado negativo, o aumento de juros tende a dificultar ainda mais o crescimento econômico. Um verdadeiro “wicked problem” enfrentado pelo presidente – que teve de recorrer, por vezes, para intervenções na economia.
Música para os ouvidos kirchneristas
Esse cenário econômico foi o principal pano de fundo para as discussões em torno das eleições de 2019. Buscando a reeleição – sob a promessa de continuar seu trabalho de tirar o país da crise –, Macri lançou sua candidatura e era considerado favorito à reeleição. Isto porque a oposição, no início do ano, estava desarticulada em torno de uma candidatura única: Cristina era candidata, mas não tinha o apoio total de peronistas.
Havia também uma corrente alternativa, que se organizava em torno de Sergio Massa (ex-chefe de gabinete) e Roberto Lavagna (ex-ministro da Economia). Estes não aceitavam Cristina como candidata à Presidência. De maneira sagaz, a ex-presidente abdicou do protagonismo, reunindo a maioria dos peronistas em torno de Alberto Fernández, o candidato oficial do Partido Justicialista (peronista).
Nesse contexto, as últimas pesquisas (ver tabela acima, feita pela Americas Society) antes das prévias eleitorais apontavam para uma vantagem moderada da chapa Fernández-Kirchner sobre Macri-Pichetto. Ainda assim, não era motivo de alarde para o mercado financeiro – claro apoiador de Macri –, uma vez que o presidente teria favoritismo no segundo turno, sendo apoiado pelas outras candidaturas aversas ao kirchnerismo.
No entanto, após as primárias, o resultado surpreendeu todas as projeções eleitorais e mostrou Fernández com 47% dos votos válidos, enquanto que Macri amargou somente 32%. Daí o desespero bateu forte na bolsa, que teve seu segundo pior dia na história.
Por que o panorama piorou tanto, já que os peronistas já estavam na frente? Pela possibilidade de vitória de Fernández-Kirchner no primeiro turno. Segundo o sistema eleitoral argentino, basta apenas 45% dos votos válidos de uma candidatura no primeiro turno para que o segundo turno seja dispensado. Outra possibilidade de vitória direta é se o primeiro colocado nas eleições tiver mais de 40% dos votos válidos e uma margem de mais de 10% em relação ao segundo. Em ambos os casos, o resultado das primárias indica vitória da chapa de Cristina.
Próximos passos
Sem mais contextualização, é bastante provável que o kirchnerismo volte ao poder na Argentina. Macri pagou pelos seus excessos de gradualismo e não conseguiu contornar os desafios impostos por um país economicamente fragilizado. Por outro lado, alguns não tão pessimistas ainda acreditam em um governo mais moderado de Fernández.
Seja quem for o vencedor, terá de enfrentar uma situação bastante delicada – dançar o tango da melancolia. O risco de calote volta a assombrar a Argentina. O aprendizado que fica é: nenhum modelo é garantia de sucesso, já que não existe (e nunca existirá) solução fácil. Nem para um lado, nem para o outro do espectro ideológico.