O atual presidente dos Estados Unidos era motivo de chacota no início de 2016. Donald Trump, o excêntrico empresário e apresentador do reality show O Aprendiz, lançou-se na disputa pela cadeira da Casa Branca pelo Partido Republicano no que seria uma das primárias republicanas com mais candidatos à corrida presidencial.
A verdade é que ninguém acreditava na ascensão de Trump, nem mesmo dentro do partido. O candidato outsider, como mostra a história americana, historicamente nunca conseguiu vencer a indicação dos partidos, muito em função da dificuldade de superar o establishment interno das siglas. Os gatekeepers, ou “guardiões dos portões” em tradução literal, da democracia impediam que candidaturas mais extremistas lograssem êxito.
No entanto, conforme explicam Levitsky e Ziblatt em Como as democracias morrem, a história da eleição de Trump em 2016 se resume, fundamentalmente, na guarda ineficaz dos portões. Quando líderes republicanos perceberam, já era tarde demais: eles não tinham mais controle nenhum sobre o processo decisório. Da mesma forma, o grande número de candidatos republicanos pulverizou os votos, o que fez com que eles não tivessem nenhuma força para conter Trump. Após a Super Terça, qualquer outro resultado que não a indicação do empresário era inimaginável.
O ano é 2020. Na próxima terça-feira, dia três de março, os democratas de quinze estados americanos vão às urnas para votar em quem eles acreditam que deve ser o algoz de Trump; aquele que impedirá a reeleição do republicano. Incrivelmente, o roteiro é parecido, mas guarda algumas importantes diferenças. No caso dos democratas, temos Bernie Sanders, senador por Vermont e autodeclarado socialista (entenda socialista dentro do contexto americano, ou seja, no país-símbolo do capitalismo). Não exatamente um outsider, mas longe do tradicional establishment democrata.
Do outro lado – na ala mais moderada – temos: Joe Biden, ex-vice de Obama; Bloomberg, o candidato da campanha bilionária; Buttigieg, o jovem prefeito de Indiana; e Klobuchar, a senadora do Minnesota, que sofre para ainda se manter na corrida. Em resumo, um punhado de candidatos, nenhum com momentum suficiente para desbancar o candidato da ala mais à esquerda.
Aqui, vale lembrar que Sanders concorreu contra Hillary Clinton nas primárias de 2016. Começou como um candidato com pouquíssimas chances e, no fim, ficou a menos de 20 delegados de enfrentar Trump. Nessas eleições, Sanders tem uma base ultra mobilizada e já conseguiu bons resultados nos primeiros três estados votantes. Em contrapartida, o antigo líder absoluto das pesquisas e agregados sobre as primárias democratas Joe Biden precisa vencer a primária da Carolina do Sul hoje (29) para demonstrar que ainda é competitivo. Tudo indica que ele vai conseguir – e alguns já o colocam como o “Comeback Kid“.
Já na Super Terça, a expectativa é que candidatos como Klobuchar e, talvez, Buttigieg desistam da corrida, afunilando as candidaturas moderadas que tentarão desbancar Sanders da liderança. Ainda assim, o senador de Vermont é o favorito: segundo a projeção do FiveThirthyEight, o resultado após a Super Terça deve garantir a Sander 650 delegados, a Biden, 345, a Bloomberg, 211 e a Warren, 142. Um cenário bastante disperso. O mesmo site de projeções aponta para o seguinte desfecho na Convenção Nacional Democrata (captura de tela feita na sexta-feira, 28, às 16h00):
Sim, você não viu errado: no momento, há mais de 50% de chance de nenhum candidato conseguir a maioria (1991 delegados) nas convenções. O risco de um candidato mais à esquerda vencer as primárias deve impactar nos votos de eleitores mais moderados. Já a pulverização dos votos contribui para que ninguém alcance o teto. Em um cenário sem maioria, os superdelegados entram em ação e, dadas as circunstâncias, Joe Biden – ou qualquer outro moderado – deve ser o escolhido.
Essa é outra diferença para a campanha de Trump de 2016: os gatekeepers democratas não parecem estar dispostos a deixar Sanders levar a nomeação. Pelo contrário, temem pelo pior – caso Sanders seja o candidato escolhido, correm o risco de perder o controle (maioria) da Câmara, conquistado em 2018 a duras penas. Em 2016, os republicanos chegaram às eleições para o Congresso com uma margem confortável em ambas as casas.
A democracia americana quase nunca deu voz aos extremos ideológicos. Seria estranho (ou significaria algo mais estrutural – veremos mais adiante) ter mais um exemplo de guarda ineficaz dos portões. Se Trump será derrotado ou não, esta é outra história. Mas um cenário em que um “extremo à esquerda” enfrente o atual presidente parece bastante improvável.
Um grande abraço,
Felipe Berenguer
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