Política sem Aspas, por Felipe Berenguer

Populismo, contágio e rejeição

Em artigo escrito há praticamente um mês, em 30 de junho deste ano, no Financial Times, o jornalista Gideon Rachman destacou as dificuldades que populistas mundo afora vinham enfrentando com o advento da Covid-19. Como bem escreveu o britânico, “Populistas odeiam ser impopulares“. Por isso, uma crise que só traz notícias ruins – como a do coronavírus – foi uma forte fagulha para a implosão de líderes como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Boris Johnson, entre outros nomes.

Para concluir o artigo, Rachman apontou que o populismo (e seus correligionários) corre sérios riscos de ser rejeitado após uma pandemia dessa magnitude, mas dificilmente seus expoentes “irão embora tranquilamente”.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sabe bem disso. Diante de um claro favoritismo de seu adversário – conforme escrevi na série sobre eleições americanas, que você pode ler aqui –, o republicano vem testando os limites do jogo eleitoral e antagonizando ao máximo seus adversários, em uma tentativa de desestabilizar o caminho do pleito até ele ocorrer (em novembro).

Em publicação no Twitter, o presidente afirmou que a votação universal pelos correios poderia fazer das eleições de 2020 as mais imprecisas e fraudulentas da história. Nos EUA, é possível votar pelos correios. Assim, por conta da pandemia, essa alternativa talvez seja muito mais utilizada. O próprio presidente já usou do voto por correio para firmar a sua candidatura nas primárias republicanas deste ano.

O comportamento agressivo (e sem precedentes, muito menos provas) de Trump coloca em dúvida a real preocupação sobre o risco da Covid-19 sobre o pleito, posto que ele mesmo já chegou a minimizar os impactos da pandemia nos EUA e também defende a volta do calendário escolar já para setembro. Desse modo, são os indicadores econômicos, as pesquisas eleitorais e sua popularidade as causas mais prováveis para o seu comportamento atual, o qual coloca as normas democráticas americanas em risco.

Não à toa, houve reação de democratas e republicanos após a declaração do atual presidente dos EUA. Entre os democratas, a reação foi apontar para o desespero de Trump; entre os republicanos, a ideia de adiar uma eleição pela primeira vez na história do país é inviável. Realmente, nas entrelinhas, o recado está dado: não há a menor possibilidade – mesmo para republicanos – de abrir um precedente histórico tão perigoso ao adiar as eleições, as quais já tomaram forma em outras depressões econômicas e até mesmo guerras.

O gesto do presidente é também simbólico. Ele quer minar a credibilidade das eleições caso venha a perdê-las. Juridicamente, a data da eleição é definida por lei federal desde 1845; Trump, então, precisaria mudá-la no Congresso, angariar a maioria dos votos de ambos os partidos e ainda superar eventuais contestações do Judiciário sobre a mudança.

O sistema de votação por correio, inclusive, é bastante confiável – segundo especialistas americanos. Cinco Estados americanos já converteram todas as suas votações para o modelo via correios. Ademais, diversos outros Estados preveem esta modalidade de voto. Além disso, estudos especializados são unânimes ao comprovar que o índice de fraudes no sistema é praticamente zero. Em 2016, quando Trump logrou-se vencedor, cerca de 40% dos votos para a Presidência foram coletados pelo correio.

O jogo duro de Trump pouco muda a dura realidade do republicano na corrida presidencial, mas ajuda a inflamar seu eleitorado e desestabilizar o jogo democrático, que deve ser o mais sereno possível. É uma velha estratégia de líderes populistas ao redor do mundo – quando as coisas não vão bem, é preciso colocar a culpa em outros. Nesse caso, sobrou até para o sistema eleitoral da democracia mais sólida do planeta.

A estratégia adotada pelo presidente é tão inédita quanto desesperada. É preciso esperar que não haja grandes sequelas para o futuro do sistema político americano. Por um lado, se já era sabido que Trump não desistiria facilmente da disputa, por outro, sobram preocupações sobre até onde o presidente vai estressar as instituições para conseguir o que quer. Por enquanto, as estratégias de Trump vão saindo pela culatra, e seu populismo, tão contagiante nos últimos anos, vem sofrendo maior rejeição.

Um abraço,

Felipe Berenguer
[email protected].br

O conteúdo foi útil para você? Compartilhe!

Recomendado para você

O investidor na sala de espera

Salas de espera podem ser muito relaxantes ou extremamente desconfortáveis. Pessoas ansiosas consideram aquele período de inatividade quase uma tortura. Quem precisa de um tempinho

Read More »

Ajudamos você a investir melhor, de forma simples​

Inscreva-se para receber as principais notícias do mercado financeiro pela manhã.