Em artigo escrito há praticamente um mês, em 30 de junho deste ano, no Financial Times, o jornalista Gideon Rachman destacou as dificuldades que populistas mundo afora vinham enfrentando com o advento da Covid-19. Como bem escreveu o britânico, “Populistas odeiam ser impopulares“. Por isso, uma crise que só traz notícias ruins – como a do coronavírus – foi uma forte fagulha para a implosão de líderes como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Boris Johnson, entre outros nomes.
Para concluir o artigo, Rachman apontou que o populismo (e seus correligionários) corre sérios riscos de ser rejeitado após uma pandemia dessa magnitude, mas dificilmente seus expoentes “irão embora tranquilamente”.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sabe bem disso. Diante de um claro favoritismo de seu adversário – conforme escrevi na série sobre eleições americanas, que você pode ler aqui –, o republicano vem testando os limites do jogo eleitoral e antagonizando ao máximo seus adversários, em uma tentativa de desestabilizar o caminho do pleito até ele ocorrer (em novembro).
Em publicação no Twitter, o presidente afirmou que a votação universal pelos correios poderia fazer das eleições de 2020 as mais imprecisas e fraudulentas da história. Nos EUA, é possível votar pelos correios. Assim, por conta da pandemia, essa alternativa talvez seja muito mais utilizada. O próprio presidente já usou do voto por correio para firmar a sua candidatura nas primárias republicanas deste ano.
O comportamento agressivo (e sem precedentes, muito menos provas) de Trump coloca em dúvida a real preocupação sobre o risco da Covid-19 sobre o pleito, posto que ele mesmo já chegou a minimizar os impactos da pandemia nos EUA e também defende a volta do calendário escolar já para setembro. Desse modo, são os indicadores econômicos, as pesquisas eleitorais e sua popularidade as causas mais prováveis para o seu comportamento atual, o qual coloca as normas democráticas americanas em risco.
Não à toa, houve reação de democratas e republicanos após a declaração do atual presidente dos EUA. Entre os democratas, a reação foi apontar para o desespero de Trump; entre os republicanos, a ideia de adiar uma eleição pela primeira vez na história do país é inviável. Realmente, nas entrelinhas, o recado está dado: não há a menor possibilidade – mesmo para republicanos – de abrir um precedente histórico tão perigoso ao adiar as eleições, as quais já tomaram forma em outras depressões econômicas e até mesmo guerras.
O gesto do presidente é também simbólico. Ele quer minar a credibilidade das eleições caso venha a perdê-las. Juridicamente, a data da eleição é definida por lei federal desde 1845; Trump, então, precisaria mudá-la no Congresso, angariar a maioria dos votos de ambos os partidos e ainda superar eventuais contestações do Judiciário sobre a mudança.
O sistema de votação por correio, inclusive, é bastante confiável – segundo especialistas americanos. Cinco Estados americanos já converteram todas as suas votações para o modelo via correios. Ademais, diversos outros Estados preveem esta modalidade de voto. Além disso, estudos especializados são unânimes ao comprovar que o índice de fraudes no sistema é praticamente zero. Em 2016, quando Trump logrou-se vencedor, cerca de 40% dos votos para a Presidência foram coletados pelo correio.
O jogo duro de Trump pouco muda a dura realidade do republicano na corrida presidencial, mas ajuda a inflamar seu eleitorado e desestabilizar o jogo democrático, que deve ser o mais sereno possível. É uma velha estratégia de líderes populistas ao redor do mundo – quando as coisas não vão bem, é preciso colocar a culpa em outros. Nesse caso, sobrou até para o sistema eleitoral da democracia mais sólida do planeta.
A estratégia adotada pelo presidente é tão inédita quanto desesperada. É preciso esperar que não haja grandes sequelas para o futuro do sistema político americano. Por um lado, se já era sabido que Trump não desistiria facilmente da disputa, por outro, sobram preocupações sobre até onde o presidente vai estressar as instituições para conseguir o que quer. Por enquanto, as estratégias de Trump vão saindo pela culatra, e seu populismo, tão contagiante nos últimos anos, vem sofrendo maior rejeição.
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Um abraço,
Felipe Berenguer
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