De tempos em tempos, deputados e senadores tentam emplacar algumas mudanças na legislação eleitoral com o objetivo de facilitar suas respectivas reconduções ao poder. É comum, também, que tais modificações escusas sejam propagandeadas como parte de uma grande “reforma política”, tema tão desejado – e, ao mesmo tempo, tão amplo – pela população brasileira.
Nos últimos anos, incrivelmente, tivemos alguns acertos em termos de melhoria no sistema eleitoral: início da cláusula de desempenho para partidos, fim das coligações em eleições proporcionais, fim da propaganda partidária no rádio e na televisão e a criação de uma janela para mudar de sigla são algumas medidas que tornam o sistema eleitoral brasileiro mais eficiente e mais competitivo.
Em 2021, contudo, observamos novamente esforços da classe política para revogar algumas medidas, por puro benefício próprio. Entre as medidas, a pior delas é a adoção do chamado “distritão”, um sistema eleitoral antiquado e que vai na contramão do que a literatura especializada mostra ser um bom sistema para eleições. O sistema caiu em desuso nas democracias do mundo e, atualmente, só é utilizado no Iraque.
Basicamente, hoje o Brasil aplica, em eleições legislativas, o sistema proporcional de lista aberta, em que o eleitor pode votar tanto em partidos quanto em candidatos e há um quociente eleitoral que leva em consideração os votos válidos e, a partir daí, distribui a quantidade de cadeiras ganhas por partido. O sistema é de lista aberta pois os mais bem votados das listas partidárias ganham cadeiras – no sistema de lista fechada, o partido decide as ordem de prioridade entre candidatos.
O sistema é um pouco mais complexo, mas tem funcionado bem e, com o fim das coligações partidárias, tende a ligar ainda mais o eleitor com o partido de sua escolha – em outras ocasiões, era comum votar em uma legenda e, por causa da coligação, acabar elegendo um candidato de uma sigla coligada.
Por outro lado, o distritão funcionaria no mesmo modelo das eleições majoritárias: candidatos disputariam votos em todo o estado e os mais votados herdariam as cadeiras legislativas. Na Câmara, por exemplo, a bancada estadual de São Paulo é composta por 70 cadeiras – sendo assim, no modelo do distritão, os 70 mais votados seriam eleitos e o restante dos votos desprezado.
Em um primeiro momento, pode-se argumentar que o modelo é mais simples e justo, afinal, aqueles com mais votos seriam representados. No entanto, na prática, distorções como o encarecimento do custo das campanhas, a redução de alternância de poder e o uso de poderes não-políticos (a tendência é de eleição de pastores, influencers, apresentadores de TV, entre outras profissões que dão visibilidade junto à população) pesam negativamente na implementação do sistema. Em outras palavras, fora a simplicidade, não há nenhuma vantagem nesta escolha.
O maior especialista em sistemas eleitorais do Brasil, o cientista político Jairo Nicolau, classificou o “distritão” como o pior sistema do mundo. De acordo com Nicolau, o distritão é “o tipo de solução para o problema que ninguém apresentou” e visa apenas fortalecer os atuais congressistas. Um dos maiores problemas do modelo, segundo o pesquisador, é que ele favorece o hiperindividualismo político – com deputados tendo grande autonomia e podendo negociar apoio direto com as bases aliadas e o próprio Executivo. Ocorre que, no atual sistema político vigente, os partidos são essenciais para o bom funcionamento do Legislativo.
Há até motivos para acreditar que o “distritão”, de fato, não facilitaria a vida de deputados quando da eleição. O cálculo de muitos parlamentares, que leva apenas em conta a sua possibilidade de estar entre os mais votados, acaba desconsiderando o fato de que partidos e eleitores também mudariam suas estratégias eleitorais no novo modelo. Não há, portanto, nenhuma base comparativa plausível nesse sentido.
Da mesma forma, não seria possível “filtrar”, por meios partidários, candidatos ao Legislativo. Qualquer um com uma filiação e alta popularidade, mesmo que sem um programa para seu mandato ou mesmo alguma identificação ideológica, poderia ser eleito, enfraquecendo a qualidade da política no Congresso Nacional. Se o brasileiro já ficou estupefato quando figuras como o Tiririca ou o Alexandre Frota foram eleitos – ainda que, como deputados, ambos tenham abandonado o personagem construído na campanha – esse tipo de candidato se proliferaria ainda mais.
A possibilidade de mudança no sistema eleitoral tramita, atualmente, em uma comissão especial na Câmara, mas foi rejeitada pelos membros do colegiado. O texto, de autoria da deputada Renata Abreu (Podemos-SP), tem sido discutido entre deputados e enfrenta fortes resistências. Por outro lado, ele conta com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que já anunciou que, mesmo com a rejeição em comissão especial, pode levar o texto para votação em plenário.
Sem acordo sobre o parecer, a relatora deve propor novo texto e cogita buscar um meio termo, pelo menos voltando com a possibilidade de coligações nas votações proporcionais. Isso, do ponto de vista político, também beneficiaria apenas partidos, e não o sistema como um todo. Segundo levantamento feito por pesquisadores, o fim das coligações reduziu o número de legendas presentes nas Câmaras Municipais em 73% das cidades brasileiras. É consenso, também, que uma das grandes jabuticabas do sistema político atual é a hiperfragmentação partidária.
O pior sistema eleitoral do mundo não deve prosperar – assim como não prosperou quando foi colocado em votação em 2015 e em 2017. Mesmo que o texto seja aprovado na Câmara, no Senado Federal é quase unânime que não haverá maioria para aprovação, nem tempo hábil para efetuar as mudanças já em 2022. Qualquer modificação na legislação eleitoral deve ser feita pelo menos com um ano de antecedência para valer nas eleições seguintes.
No entanto, as negociações sobre uma nova reforma política preocupam, justamente pela vontade de revogar parte das mudanças feitas na última reforma. Algumas siglas que se veem, hoje, ameaçadas de ficar de fora do Congresso Nacional por falta de representatividade, tentam a todo custo reverter parte das boas medidas implementadas recentemente no Brasil. Pode ser que, pela primeira vez, a melhor coisa a se fazer seja deixar tudo exatamente como está.
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