Os últimos dias foram libertadores para alguns. Como parafrasearia nosso presidente: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32).
A debandada de Salim Mattar e Paulo Uebel do governo foi um choque de realidade para uma parcela significativa do mercado. Dois secretários especiais – um responsável pelas privatizações e outro pela reforma administrativa – chegaram ao limite do possível. Não havendo mais nada a fazer no governo, pediram licença e se retiraram.
A reação de investidores é sintoma de um mercado que, quando o assunto é política, tem dificuldades de ler nas entrelinhas. Quem acompanha o trabalho da Levante sabe: privatizações, desde 2019, antes da pandemia, estão no grupo de temas espinhosos e não devem acontecer neste mandato. Da mesma forma, em fevereiro deste ano, deixei claro que a reforma administrativa era muito cara ao presidente e ficaria – embutindo aí certa dose de esperança – para 2021, no mínimo.
Importante ler a entrevista de Salim Mattar ao Estado de S. Paulo, logo após sua saída. Bem intencionado, ele comenta que fez o que pôde para privatizar (“Por mim, eu venderia todas as empresas, sem exceções”) e que, infelizmente, existem fortes resistências em vender as empresas. O empresário ainda comentou as dificuldades de se trabalhar no Estado, em contraponto à iniciativa privada. Ingênuos são aqueles que embarcam em uma empreitada na res pública sem entendê-la – as frustrações de Salim Mattar são velhos fantasmas do setor público, que abocanha dantescamente os aventureiros de primeira viagem do setor privado.
A “debandada”, como classificou Paulo Guedes, representa uma ferida no pilar do liberalismo, ainda importante para a sustentação de Bolsonaro. Não significa, porém, sua ruína. É preciso, mais uma vez, enxergar com serenidade para atentar-se aos detalhes. Estamos diante de uma pintura complexa; um quadro com inúmeros detalhes. O investidor mais emocional rapidamente foi do céu – reformas vão andar e privatizações vão acontecer – para o inferno – o governo irá romper o teto e Paulo Guedes abandonará o barco.
Com um pouco mais de racionalidade na análise, podemos traçar um panorama alternativo à tragédia econômica. As saídas de Uebel e Mattar são dignas de lamentação – perde-se profissionais competentes e comprometidos com um Estado mais eficiente. Por outro lado, o pilar do liberalismo continua sendo importante para Bolsonaro. Como o próprio ministro da Economia disse (ou ameaçou?), furar o teto de gastos é caminhar para a “zona sombria do impeachment“.
Diante da memória vívida do que ocorreu com Dilma Rousseff, é difícil imaginar que o presidente vá arriscar uma política econômica irresponsável, ainda que, por exemplo, os dividendos políticos do auxílio emergencial para trabalhadores informais sejam enormes. Atualmente, não existe qualquer possibilidade de haver um rompimento do teto desacompanhado de fuga de capitais, volta da inflação e desconfiança generalizada dos setores econômicos.
Essa percepção é comungada não somente entre Paulo Guedes e o presidente, mas também entre lideranças do Congresso. Apesar de existirem alguns partidos apresentando divergência, até mesmo o Centrão parece ligeiramente comprometido com as finanças públicas. Como disse: o trauma dos últimos anos foi grande demais para um novo experimento com a economia brasileira.
De qualquer forma, a queda de braço, que, em 2019, era entre o Legislativo e o Executivo, hoje é dentro do próprio governo. Com a formação de uma base governista – mais que solidificada com a recente mudança da liderança do governo na Câmara –, a agenda governamental deve tramitar com maior facilidade. A questão é: qual será a agenda daqui para a frente? Por agora, segue a de Paulo Guedes.
Nesse contexto, o núcleo de tensões transferiu-se do Executivo-Legislativo para somente o Planalto e a Esplanada dos Ministérios. Chegando na metade de seu mandato, certamente Bolsonaro já vislumbra as eleições de 2022 e – nada novo sob o sol – parece confuso quanto à estratégia que mais lhe agrada. Se, na quarta-feira (12), o presidente foi às redes reafirmar seu compromisso com o teto de gastos e outras medidas fiscalistas, na quinta (13), durante sua tradicional transmissão ao vivo, ele afirmou que a ideia de furar o teto existe e “o pessoal debate, qual o problema?”. Realmente, o presidente não entende. Melhorar delegar para o posto Ipiranga.
Outra entrevista que reforça a mudança de foco do conflito é a do ex-líder do governo na Câmara, o deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO). Bastante grato ao presidente pela oportunidade que teve na casa, o deputado deixou clara a sua opinião sobre a mudança de rumos no Congresso. Vitor Hugo afirmou que, de fato, o presidente não fazia questão de ter uma base aliada em 2019, mas que a realidade deste ano, inclusive influenciada pela pandemia, mudou. “Tivemos esse foco [de não construir uma coalizão] até o momento em que o presidente e o governo quiseram começar a construir uma base”. Sai a combativa ala bolsonarista para entrar o pragmatismo do Centrão – por meio do novo líder, deputado Ricardo Barros (PP-PR).
Daqui para a frente, será necessária mais leitura nas entrelinhas para construir posições no mercado financeiro. Podemos esperar turbulência política, nesse novo eixo de embates dentro do próprio Executivo, nos meses de agosto, setembro e outubro. Em meio a tudo isso, ainda há espaço para avançar com pautas importantes, como a autonomia do Banco Central (BC), o novo marco legal do gás, entre outras. A própria reforma tributária – não a do governo – tem chances de prosperar no ano que vem.
Nem muito ao céu, nem muito à terra. Analisar Brasília requer contexto. Por enquanto, o contexto é de responsabilidade fiscal. E o desfecho mais plausível é a manutenção do teto de gastos, com, possivelmente, alguma manobra legal ou acordo entre as partes para disponibilizar uma quantia restrita do Orçamento para obras e investimentos públicos. Um equilíbrio perigoso, mas ainda assim melhor que a barbárie fiscal.
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Um abraço,
Felipe Berenguer
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