É comum que se ouça por aí a expressão “da água ao vinho” para referir-se a uma pessoa que mudou muito. Vertiginosamente. Ao mesmo tempo, é consenso na literatura especializada da psicologia que, de uma hora para outra, ninguém muda totalmente. Muda-se, até, mas não genuinamente. Crenças são raízes – conscientes ou não. Retirá-las de uma hora a outra necessitaria de, no mínimo, um trauma muito grande. Mudança é processo. Guardemos essa questão, pois voltarei a ela em breve. Agora, uma quebra temática.
Jair Bolsonaro assinou, nesta quinta-feira, 16, decreto para elevar as alíquotas do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). O aumento foi realizado para aumentar recursos a fim de custear o Auxílio Brasil, um programa de renda que o governo tenta oficializar para substituir o Bolsa Família. O objetivo do atual governo é que esse programa seja capaz de atender, diretamente, até 17 milhões de famílias (hoje em dia, são 14,6 milhões famílias beneficiadas pelo programa atual). Ademais, o aumento não foca apenas o número de famílias, mas também o valor do custeio: de R$ 189,00, a ideia é que o repasse chegue a R$ 300,00 mensais.
A medida desagradou o mercado. Mais imposto, em um país inchado como o nosso, é sempre ruim para a economia real. Ainda mais quando o aumento de impostos é realizado a fim de levantar um programa que parece insustentável no momento, mas que pode ajudar, e muito, o presidente em sua reeleição.
O valor do aumento, aqui, não é de suma importância. O que é importa é justamente o malabarismo político que vem sendo realizado pelo governo e por sua base para colocar pautas como o Auxílio Brasil em prática. E é isso que pretendo analisar aqui.
Bolsonaro foi eleito sob a égide da mudança. Contra o “populismo”. Dizia, inflamado como o vinho, que iria romper com o establishment político brasileiro, com o jogo que reina (no presente, mesmo) desde que recuperamos a nossa democracia. Dizia, também, que iria reduzir o Estado, a fim de torná-lo mais efetivo, em uma vertente liberal.
Acordos políticos, ligações com o centro, concessões. Fatores como esses sempre foram essenciais para que um presidente conseguisse governar e colocar, na medida do possível, aquilo em que acredita em prática. Seja em medidas de corte ou de aumento da atuação do Estado na vida da população.
Relembremos, rapidamente, outro acontecimento que abordei no meu último texto (A arte da paz | Política sem Aspas). Após discurso inflamado (você já sabe: como o vinho) em manifestação do 7 de Setembro, no qual o presidente “esticou a corda” ao referir-se a outras instituições, deixando parte de sua base mais fiel em êxtase, Bolsonaro recuou. Em documento nomeado como “Declaração à Nação”, o Presidente afirmou que nunca teve a intenção de agredir quaisquer dos Poderes, que as pessoas que exercem o poder não têm o direito de “esticar a corda” e que suas palavras recentes foram proferidas no calor do momento. Para a surpresa de muitos? Dessa vez, não.
Bolsonaro vem perdendo cada vez mais popularidade. A mais recente pesquisa do DataFolha, divulgada ontem, 17, mostra que, no segundo turno, Lula tem 56% de intenção de votos, enquanto o atual presidente, apenas 31%. Sei que é muito cedo para que essas pesquisas sirvam, de fato, como uma base sólida de referência. Porém, elas são um bom indicativo…
Portanto, o que essas duas coisas, o aumento do IOF e a amenização do discurso do presidente, têm em comum? É simples. Primeiro, a mudança de discurso de Bolsonaro mostra um recuo diante das crenças aparentes de alguém que prometia quebrar com o establishment. Segundo, o aumento do IOF para colocar um programa social que parece insustentável no patamar atual da nossa economia em prática vai na contramão do pensamento liberal sob o qual o Presidente se elegeu.
Ele parece ter entendido, após a mudança de discurso, que não pode governar sem os outros dois Poderes. É claro: os ataques proferidos vão muito além de uma questão de “governança”; poderiam ocasionar, até mesmo, o impeachment de Bolsonaro. O recuo, portanto, mostra que ele parece ter, ao menos momentaneamente, colocado o “pé no chão”. Ele precisa do Legislativo e do Judiciário para governar, assim como também precisa de uma base forte no Congresso para a aprovação de medidas alinhadas ao seu plano de governo.
E o aumento do IOF pode ser visto, no fundo, como uma medida populista. Esse programa pode ajudá-lo a angariar votos de uma parcela considerável da população.
Assim, Bolsonaro parece ter desistido de lutar contra o establishment político. Parece ter ignorado o seu viés liberal. Parece ter abraçado o populismo, de fato. O presidente não mudou da água para o vinho. Ele mudou do vinho, que ainda sobe à cabeça em momentos de êxtase, como nas citadas manifestações, para a água, adotando um tom mais ponderado e entrando no jogo político-populista a fim de conquistar mais votos, tentando recuperar parte da sua popularidade.
Até onde isso pode ser positivo para o mercado brasileiro? Sem dúvidas, um tom mais ponderado entre os Poderes é bastante positivo para a nossa economia. Tira a chance de um impeachment ou de um desentendimento legal, fatores que espantam qualquer investidor. Porém, do outro lado da moeda, encontram-se as “recentes” medidas de cunho populista do presidente, que acabam ignorando a importância do controle fiscal, das contas públicas, da aprovação de medidas essenciais para o avanço da economia. esse jogo de fogo cruzado, resta saber se essas mudanças (constantes) do vinho à água se estabilizarão. Ou se serão realizadas conforme a banda toca.
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