Santiago Nasar é um daqueles protagonistas que se encaixam no grupo de estranhos familiares. Não é como se o leitor o conhecesse de longa data ou como se ambos trocassem algum tipo de intimidade, mas o enredo traz o que seria o último dia de vida de Santiago e envolve de tal maneira quem acompanha o personagem que a sua inevitável morte quase se torna um fardo.
Em Crônica de uma morte anunciada, Gabriel García Márquez, o maior escritor colombiano de todos os tempos, conta a história do assassinato de Santiago Nasar pelos dois irmãos Vicario, em vingança a um suposto adultério cometido pelo protagonista. No romance, praticamente todos os habitantes do vilarejo ficam sabendo do homicídio premeditado, mas nada se faz para evitá-lo. O alheamento de Santiago também o impede de se safar do que seria, como o próprio título diz, uma morte anunciada.
Na política, poucas vezes temos o dito pelo não dito. Governantes evitam deixar pontas soltas justamente porque elas podem, rapidamente, virar uma enorme dor de cabeça. Há duas semanas, em um domingo (5), Bolsonaro tomou a decisão de exonerar o ministro da Saúde de seu cargo. Voltou atrás a pedido de outros integrantes do governo. Mas a demissão já tinha deixado de ser uma questão de “se”, passando para “quando”. Metaforicamente, é possível dizer que Mandetta já tinha sua morte anunciada.
A relação entre Bolsonaro e o ministro já vinha desgastada há algum tempo. O presidente tinha dificuldades em aceitar o crescente protagonismo de Mandetta com a chegada do coronavírus ao Brasil. Mais graves, porém, foram as suas divergências metodológicas: Bolsonaro nunca foi grande apoiador do isolamento horizontal, Mandetta sim; o presidente propagandeou inúmeras vezes o uso da cloroquina, o ministro, por sua vez, reiterava que não havia comprovação científica sobre sua eficácia. O descompasso era evidente.
Se a ala militar e outros interlocutores garantiram uma sobrevida a Mandetta, ele a queimou quando concedeu entrevista exclusiva ao programa Fantástico, da Rede Globo, enviando um recado direto ao presidente. Na ocasião, o ministro disse que o brasileiro não sabe se deveria escutar o ministro da Saúde ou o presidente. Ali foi a gota d’água para sua demissão – e, não se enganem, Mandetta sabia disso.
A verdade é que não existem santos na política. Como já disse por aqui, tudo é um jogo de interesses. Não há vácuo em Brasília – se alguém abre uma brecha, ela logo é ocupada. Se Bolsonaro, por um lado, teve motivos pessoais para demitir Mandetta, também é certo que o ministro tem suas aspirações políticas e toma suas decisões em função delas. Da mesma forma, os embates do presidente com governadores também pesaram, indiretamente, contra o ministro da Saúde.
Um tempero interessante para a decisão é o da popularidade do agora ex-ministro, a qual se tornou, atualmente, maior que a do presidente – apesar de a distância não ser tão grande, como alguns pintaram. Há de se questionar se a decisão de Bolsonaro irá afetar sua popularidade, além das relações com os outros Poderes. Até porque Mandetta deixa o cargo não só com o apoio da maioria da população, mas também de uma boa parcela da classe política.
A crônica foi a de uma morte tão anunciada quanto inadiável. Se comparado com o nosso protagonista do romance de García Márquez, Mandetta teria uma espécie de reedição em que saberia da sua morte, mas nada poderia fazer para impedi-la. Afinal, hierarquias existem para serem respeitadas – e quem manda é o presidente.
Superado todo o imbróglio envolvendo Bolsonaro e Mandetta, o Planalto, agora, vira a página e as expectativas são de mudanças no combate ao coronavírus. O substituto escolhido deveria ser médico, conservador, alinhado com as opiniões do presidente e contra o aborto – essas eram as condições prévias.
Dentre as opções disponíveis, Bolsonaro optou pelo oncologista Nelson Teich, apadrinhado do secretário de Comunicação da Presidência, Fábio Wajngarten, e do empresário bolsonarista Meyer Nigri, dono da Tecnisa. Teich foi consultor da área de saúde na campanha de Bolsonaro e é fundador do Instituto COI, que realiza pesquisas sobre câncer.
Em seu primeiro discurso ao lado de Bolsonaro, o novo ministro frisou que não há dicotomia entre saúde e economia, além de enfatizar a importância de continuar tomando decisões baseadas em evidência científica e critérios técnicos. Em artigo publicado em uma das suas redes sociais, Teich menciona que o isolamento horizontal é a melhor estratégia no momento, diante de um cenário de falta de informações detalhadas e completas do comportamento, da morbidade e da letalidade da Covid-19. Ainda, o médico declara que modelos matemáticos e epidemiológicos não podem ser tomados como fatos, podendo causar ainda mais ansiedade e medo do que auxiliar na compreensão e na solução de problemas.
Teich terá o duro trabalho de iniciar uma estratégia que permita estruturar a retomada das atividades econômicas e cotidianas do País. Ele admite, porém, que, para isso ocorrer, é necessário aumentar (e muito) o número de testes no país. Também já venho batendo nessa tecla há algum tempo nas minhas colunas.
No fundo, Mandetta e o novo ministro não têm muitas divergências metodológicas. O ex-ministro caiu, entre outras razões, por entrar em rota de colisão com o bolsonarismo. Que Teich possa fazer um bom trabalho: quanto maior sua autonomia, melhor. A razão deve prevalecer – o Brasil não precisa da sua própria crônica de uma morte anunciada.
Um abraço,
Felipe Berenguer
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