Certamente, o ano de 2020 ficará marcado na história. A Covid-19 tem potencial para ser um dos maiores acontecimentos do século XXI. Assim, nesta esteira, aqueles temas sobre os quais eu vinha tratando por aqui – eleições americanas, reformas, eleições municipais no Brasil e por aí vai – tornaram-se irrelevantes no curto e médio prazo.
A verdade é que não há previsão de volta à normalidade. Aliás, nem mesmo se sabe o que será da tal da normalidade a partir desta experiência pela qual estamos passando. Tudo ainda é muito incerto. Diante disso, hoje abordarei a situação de contaminados pelo coronavírus no Brasil e ponderarei se temos como saber o número real de infectados por aqui.
De acordo com os números oficiais do Ministério da Saúde até o fechamento desta coluna, o Brasil tem 7.910 casos confirmados e 299 óbitos, sendo 63 por cento dos infectados da região Sudeste, 15 por cento da Nordeste, 10 da Sul, 7 da Centro-Oeste e 5 da Norte. Com esses números, a taxa de letalidade do vírus no país, de 3,8 por cento, fica abaixo da taxa mundial: 4,8 por cento a cada 100 infectados, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). No gráfico abaixo, temos a curva de contaminados no Brasil, a qual mostra, pelo menos para as próximas semanas, uma clara tendência de aumento exponencial dos casos.
Com o primeiro caso de Covid-19 confirmado no Brasil no dia 26 de fevereiro (e com estudos do ministério da Saúde apontando que o vírus pode, na verdade, ter chegado no fim de janeiro), há fortes suspeitas de que os 7.910 casos atuais não retratam o real número de infectados. Tomemos como exemplo a Áustria, país de 8,8 milhões de habitantes (2018) que notificou seu primeiro paciente com coronavírus no mesmo dia que o Brasil: o dado mais recente do país europeu já contabiliza 10.182 casos confirmados.
Existem alguns argumentos que podem explicar por que o número de contaminados por aqui ainda é relativamente pequeno: o primeiro deles diz respeito à agilidade das medidas de isolamento social tomadas Brasil afora. Com o início do isolamento social em alguns estados já na segunda semana de março, há chances de que tenhamos evitado chegar à situação enfrentada hoje por países como Itália, Espanha, Irã e por alguns estados dos EUA.
No entanto, isso somente será verificado quando houver uma melhor compreensão sobre como e em que velocidade o vírus está se espalhando. Para isso, há somente uma saída: testar o maior número de pessoas possível. O que nos leva ao segundo motivo: pode ser que o número de infectados no Brasil não seja tão alto porque o governo tem uma quantidade limitada de testes. Na prática, isso significou adotar uma metodologia na qual a aplicação dos exames para a confirmação, ou não, de Covid-19 é feita somente em pacientes em estado grave.
Segundo balanços de Secretarias estaduais de Saúde, cerca de 25 mil testes esperam, atualmente, seus resultados ao redor do país. Este número é pouco mais de três vezes a quantidade de confirmados. A expectativa é que os diagnósticos sejam agilizados e o número de casos diários acentue seu crescimento a partir desta próxima semana.
Da mesma forma que o resultado é demorado por conta do excesso de demanda nos laboratórios, enfrentamos a escassez de equipamentos disponíveis para aumentar a amostra da população testada. O próprio ministério da Saúde admitiu que o país testa hoje cerca de sete vezes menos que o ideal. Assim, ciente da escassez de testes, ele encomendou 22 milhões de testes – os quais devem ser entregues por partes. Não se engane: o número de infectados ainda vai subir (e muito) – só não é possível saber para quanto e nem quando.
A atitude mais eficiente, nesse sentido, é testar o máximo de indivíduos possível para entender onde estão os fluxos de infecção, em quais cidades os surtos são maiores, menores, controlados etc. Até porque a grande maioria dos países não têm a noção exata da quantidade de infectados por país. A subnotificação é uma realidade mundial.
Para entender melhor a questão da notificação, vale a pena usar a metáfora trazida pelo virologista e pesquisador Átila Iamarino: os países encontram-se em quartos escuros. E os testes são, basicamente, a lanterna. Quanto mais testes, maior a possibilidade de direcionar a lanterna para diferentes cantos do suposto quarto escuro e, assim, entender o que se passa.
Em outras palavras, países com testes em abundância conseguem enxergar melhor quantos são os contaminados pela Covid-19, os mortos, em quais regiões etc. Alguns países, porém, não têm uma quantidade suficiente de testes (lanterna), por isso usam, parados, uma vela para tentar iluminar o redor e ver aquelas pessoas que vão chegando até essa luz – ou aquelas que vão se tornando casos de contaminação por terem tido complicações hospitalares mais graves. Como já comentamos, este é o caso do Brasil.
Um recente estudo publicado por cientistas e pesquisadores da London School of Hygiene & Tropical Medicine buscou estimar qual a porcentagem de subnotificação de países com mais de dez mortes registradas com base em um modelo matemático. Os resultados podem ser conferidos no gráfico abaixo. Nele, as barras azuis representam as porcentagens mínimas e máximas de casos reportados dentro de um Intervalo de Confiança de 95 por cento.
Note que países que tiveram reações tardias ao coronavírus são os que mais podem ter subnotificado casos. Na outra ponta, estão aqueles países considerados eficazes no combate ao coronavírus – caso de Israel, Eslovênia e Coreia do Sul. Estima-se que a Áustria, para voltar ao exemplo citado anteriormente, tenha reportado em média 42 por cento dos casos totais do país, com esse número podendo variar para baixo (32 por cento) e para cima (56 por cento) no Intervalo de Confiança.
No nosso caso, o estudo aponta para somente 11 por cento dos casos reportados e para uma baixa amplitude nas estimativas. No pior cenário, o país somente reportou 8,9 por cento dos casos; no melhor, 14%. Sob um exercício hipotético, o Brasil teria, portanto, 71.909 casos confirmados atualmente, usando o último número de confirmados (7.910) como base.
Com absoluta certeza, ainda veremos um forte aumento de casos diários – o que significa que ainda estamos no começo da subida da curva. O exercício de projeção do pico da curva é dificílimo e envolve uma série de variáveis ainda muito nebulosas. Por isso, quanto mais próximos da realidade estivermos, mais fácil será entender a conjuntura brasileira e, a partir daí, tomar decisões eficientes de políticas públicas. Caso contrário, continuaremos no escuro. Uma coisa é certa: o caminho para superar o coronavírus é testar, testar e testar.
Um abraço,
Felipe Berenguer
[email protected].