No meu incansável exercício de acompanhar de longe a política de Brasília, fui acostumando-me com algumas realidades próprias desta ciência tão complexa e recheada de interesses e egos. Uma delas é o dinamismo dos eventos políticos no curto e médio prazos. A rapidez com que o cenário-base pode mudar, neste universo, é surpreendente. Por vezes até assustadora, porque impacta os 99% desprevenidos. Basta uma declaração (quem lembra do Joesley Day), uma carta (ou da carta do “vice decorativo” de Temer) ou um parente (Pedro Collor que o diga) para que guinadas políticas ocorram.
Por isso, também, é praticamente impossível projetar cenários políticos em um horizonte mais longo. Sempre brinco que, se faltam 3 anos para as próximas eleições presidenciais, faltam – figuradamente – uma eternidade em termos políticos. O vigésimo sexto governador do Estado de Minas Gerais, falecido Magalhães Pinto, certa vez afirmou que a política é como uma nuvem. Quando se olha para ela, está de um jeito. Olha-se novamente e ela já mudou.
Dada a reflexão acima, é seguro dizer que temos uma nova conjuntura política sendo construída no Brasil atual. Ainda não se pode falar em grandes mudanças no jogo, mas dois acontecimentos recentes têm potencial para modificar a dinâmica de forças do Planalto e, principalmente, do Congresso já em 2020. Refiro-me à soltura do ex-presidente Lula, que ocorreu na última sexta-feira (8), e à decisão de Jair Bolsonaro, na última terça (12), de deixar o PSL, seu partido.
A conjuntura política dá sinais de mudanças por três diferentes consequências advindas dos episódios acima citados: a) a radicalização do discurso de um Brasil polarizado; b) a possibilidade de fortalecimento da oposição, principalmente do PT; e c) o desafio da criação de um novo partido para abrigar Bolsonaro e seus correligionários. Vamos passar por cada um destes pontos, mas sem deixar de contextualizar antes os dois ocorridos.
O primeiro episódio decorreu da reversão do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão em segunda instância. Por 6 a 5, a corte voltou a interpretar como inconstitucional a execução provisória da pena após condenação em segunda instância. Isso deu abertura para que presos que estivessem com o processo ainda sem trânsito em julgado (ainda com possibilidade de recurso em instâncias) pedissem suas respectivas solturas. Foi o caso do ex-presidente Lula, liberado na última sexta-feira (8).
No segundo caso, trata-se do desfecho envolvendo o embate entre bolsonaristas e o PSL, partido de Bolsonaro. Como já havia alertado, as chances do casamento entre as partes ser reatado eram quase nulas. Era só uma questão de tempo para o presidente avaliar suas opções e escolher a melhor saída para ele e seus aliados. Dito e feito: na última terça-feira (12), Bolsonaro anunciou oficialmente que está de saída do PSL, tendo como destino partidário uma nova legenda, Aliança pelo Brasil (APB) – ainda em processo de criação. A escolha por um novo partido tem motivação legal, já que há jurisprudência do TSE para que deputados mudem de partido sem perder seus mandatos – desde que a sigla seja nova.
A tal da conjuntura
Dos episódios, como já mencionei, existem três consequências perceptíveis para a conjuntura política. A primeira é a mais evidente: a tendência atual é de maior radicalização dos principais atores políticos, pavimentando o caminho para mais um mandato presidencial em que o país está dividido e os polos ofuscam expoentes do centro político. Como apontou a mais recente pesquisa da XP/Ipespe (13/nov), o governo do presidente é considerado “ruim e péssimo” por 39%, “ótimo e bom” para 35% dos entrevistados e regular para apenas 25% deles.
A pesquisa reflete a tendência de um embate mais enfático, já que a avaliação como “regular” do presidente caiu de 32 para 25 por cento desde março. Ademais, a porcentagem dos entrevistados que não souberam ou não quiseram avaliar o governo ficou em 2 por cento. Em março de 2019, essa mesma categoria era de 8 por cento da amostra. Traduzindo os números, é possível perceber uma diminuição tanto dos indecisos quanto daqueles que não gostam nem desgostam do governo. Em um cenário de maior antagonismo entre as forças políticas, a população tende a avaliar o governo de dois modos: como “bom/ótimo” ou como “ruim/péssimo”.
Lembrando, ainda, que polarização não necessariamente é radical – basta lembrarmo-nos dos anos de PT x PSDB, em especial nos governos FHC e Lula. Em nosso caso atual, porém, temos um ambiente polarizado e radicalizado – com Lula e o PT em uma ponta e o bolsonarismo em outra.
A segunda consequência, mais do campo hipotético do que do prático, refere-se à mudança de atitude da oposição petista. O Partido dos Trabalhadores tem a maior bancada partidária da Câmara dos Deputados e foi a maior força da esquerda no Brasil do século XXI. No entanto, em 2019 vimos um partido desorganizado e com oposição tímida ao governo, muito em função dos esforços estratégicos exclusivamente centrados na narrativa de “Lula Livre”, como citado acima.
Agora que o maior líder do partido está livre do cárcere (pelo menos no curto prazo), a sigla terá uma liderança organizacional (historicamente, partidos de esquerda são bastante disciplinados quando guiados por decisões de dirigentes) e poderá adotar uma nova estratégia de oposição. Em um dos primeiros discursos após sua saída, o ex-presidente focou suas críticas sobre a política econômica adotada por Paulo Guedes – chamando-o de “destruidor de empregos e de empresas públicas” e de “demolidor de sonhos”. Pode ser, também, que o foco não seja esse, mas sim a segunda etapa da narrativa “Lula Livre”, tornando-se “Lula Inocente”. Nesse caso, a oposição petista ao governo continuaria mais branda.
Por fim, o terceiro aspecto conjuntural a ser observado é o da mudança partidária do presidente. A disputa pelo poder no PSL rachou o partido ao meio e tornou insustentável a convivência entre a ala bolsonarista e bivarista (do presidente do PSL, Luciano Bivar). Após avaliar suas opções, Bolsonaro e quadros próximos optaram por criar um novo partido – podendo moldá-lo à sua vontade e ter total comando em relação às decisões políticas e, claro, aos recursos financeiros.
O novo partido, Aliança pelo Brasil (APB), já tem seu estatuto pronto e deve, agora, ser registrado em cartório para depois conseguir reunir as assinaturas necessárias para sua constituição perante o TSE. De acordo com a lei, são necessárias assinaturas de 0,5 por cento dos total de eleitores que votaram nas últimas eleições para a Câmara dos Deputados. Além disso, as assinaturas devem estar distribuídas em pelo menos nove Estados da Federação, tendo que representar, no mínimo, 0,1 por cento do eleitorado em cada Estado. Em números absolutos, estamos falando de cerca de 490 mil subscrições. A ideia dos dirigentes é ter o partido homologado no início de 2020 – para que filiados possam concorrer às eleições municipais do ano que vem.
Existem alguns riscos embutidos nesta arriscada estratégia: nunca antes houve uma criação de um partido em cerca de cinco meses. Em média, todo o processo dura de dois a três anos. Bolsonaro tem uma estratégia para dar celeridade ao processo, coletando assinaturas via plataformas online, mas que pode ser considerada ilegal pelo Tribunal Superior Eleitoral. Ainda, como comentado, há o risco de judicialização na mudança de deputados do PSL (aliados do presidente) para o APB.
Os riscos são, portanto, de duas naturezas: no que tange ao partido, caso sua homologação não estiver autorizada até meados de abril, não será possível disputar nenhum cargo municipal pela legenda. Com relação a Bolsonaro, eventuais derrotas judiciais que impeçam os deputados aliados de se juntarem ao APB enfraqueceriam sua base no Congresso. Os problemas de conjuntura são, respectivamente, a falta de capilaridade do partido Brasil afora (importante para consolidar uma imagem partidária e fortalecer a relação do presidente com forças regionais) e uma fragilização da (já restrita) base de apoio de Bolsonaro no Congresso – importante para a agenda governamental.
Em suma, são esses os novos elementos que podem (e devem) configurar uma nova conjuntura de forças políticas para 2020. Em ano de eleições, os resultados do pleito em âmbito municipal serão um bom indicativo de como a conjuntura se dará – abrindo margem para interpretações mais precisas para 2022. Vale ressaltar que as próximas eleições gerais estão longe, mas 2020 é um bom termômetro para iniciarem as conjecturas sobre o futuro eleitoral.
Da mesma forma, pode haver impactos para a agenda de reformas recém pautada no Congresso. Ainda é cedo para inferir qualquer nova dificuldade imposta para temas que – até agora – vêm sendo bem aceitos por deputados e senadores. Mas vale a atenção dos analistas políticos – e eu posso garantir que você, leitor, estará sempre a par.
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