A primeira frase de “José” (que dá título a este texto), poema de Carlos Drummond de Andrade publicado originalmente no livro Poesias, de 1942, é prenúncio de uma série de questionamentos, nos versos seguintes, sobre o rumo que o suposto personagem, em um contexto de descrédito e pessimismo diante do cotidiano, irá seguir. É justamente citando um dos maiores poetas do nosso País, então, que o Política sem Aspas traz uma reflexão sobre o futuro da nossa economia e a reação dos mercados.
Pois não éramos nós, até pouco tempo atrás, “José’s” tateando, nas sombras, possíveis caminhos para a solução fiscal brasileira? Ou melhor: procurando entender o que seria de nossa economia? Pois é, parece que as coisas começam a, lentamente, tomar rumos mais claros. Antes despreocupado, agora o mercado brasileiro parece ter tomado uma boa dose de sobriedade e se mantém reticente quanto ao futuro da economia do País. A tensão implícita nas tomadas de decisões de investidores reflete a maior volatilidade de grande parte dos ativos financeiros em agosto.
Tudo gira em torno da atual disputa de narrativas – com o teto de gastos devidamente colocado como pano de fundo – sobre a política econômica a ser implementada nestes pouco mais de dois anos que restam para o atual mandato de Bolsonaro. Seguindo o raciocínio da minha coluna do último sábado, o embate envolve, de um lado, Paulo Guedes e sua equipe econômica (e o mercado, por tabela) e, de outro, outros quadros do governo que enxergam um caminho bem pavimentado para a reeleição de Bolsonaro por meio do aumento de gastos via obras públicas e políticas assistencialistas.
Felizmente, hoje a balança ainda pesa para o lado fiscalista. No início da semana, o presidente e o economista fizeram questão de espantar a boataria envolvendo desentendimentos e reforçaram os laços de confiança entre ambos. Bolsonaro foi enfático ao afirmar que confia no trabalho de Paulo Guedes.
Também por fortúnio, existem hoje instituições exclusivamente voltadas à análise do quadro fiscal brasileiro e responsáveis por fomentar o debate acerca das políticas envolvendo esse pilar macroeconômico. É o caso da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal – hoje, o principal watchdog (“cão de guarda”) das contas públicas brasileiras.
Na quarta-feira (19), a IFI publicou um válido documento que explora a importância das regras fiscais em um contexto de fragilidade – no qual o Brasil está inserido. Denominada de “Considerações sobre o teto de gastos da União”,’ a nota faz defesa sólida do mecanismo de contenção de gastos e vem em excelente timing, com o governo prestes a enviar o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021.
Como bem fundamentado no texto, o teto é uma regra fiscal para o lado dos gastos e, como tal, objetiva conter a tendência de o governo brasileiro incorrer em um déficit excessivo e logo adentrar em uma trajetória de dívida insustentável. Com o advento da pandemia, os desafios estão ainda maiores em função da “extraordinariedade” deste ano fiscal. Gastos imprevistos surgiram e acabaram por surtir efeitos colaterais positivos para a avaliação do governo. Nessa esteira – e valendo-se de anos de crescimento tímido –, alguns membros do governo federal vêm prezando por um espaço maior no Orçamento de 2021 para gastos com investimento público.
Ocorre que, como a própria nota da IFI demonstra, a rigidez orçamentária do Brasil não permite que os gastos sejam aumentados – menos pelo teto, mais pela meta de resultado primário, já que os gastos obrigatórios ficam, a cada ano que passa, maiores em relação ao PIB.
Assim sendo, sobram poucas alternativas austeras que também permitam que montantes com investimentos sejam aprovados para o próximo ano. Daí as ameaças de rompimento/revisão do teto de gastos, ou outros artifícios envolvendo contabilidade criativa. A bem da verdade, propostas para driblar o teto de gastos são anteriores até mesmo à pandemia.
São exemplos, conforme lista feita pela IFI: a capitalização da Emgeprom em 2018 e 2019, que totalizou R$ 10,2 bilhões; a MP 900/2019 (acabou caducando), que previa a criação de um fundo privado alimentado por multas aplicadas por autoridades ambientais, ao largo do orçamento público; a manobra do governo sobre a votação do Fundeb (excluso ao teto), para destinar parte dos recursos do fundo para um novo auxílio governamental; e a consulta da Casa Civil ao Tribunal de Contas da União (TCU) para utilizar créditos extraordinários (emergenciais, urgentes e imprevisíveis) na viabilização de investimentos e infraestrutura.
Uma saída, que liberaria cerca de R$ 40 bilhões (cerca de 0,5%) do Orçamento do ano que vem, segundo cálculos da Instituição Fiscal, seria já acionar os gatilhos previstos na Emenda Constitucional do Teto. Por meio dos gatilhos, haveria uma série de medidas que congelariam gastos obrigatórios e reduziriam, principalmente, as despesas com pessoal. Idealmente, os R$ 40 bilhões deveriam servir para auxiliar o cumprimento do resultado primário, mas o governo poderia, caso desejasse, destinar parte desses recursos para outras finalidades.
Ao cabo, vale ressaltar uma mensagem exposta pelos economistas da IFI (Felipe Salto, Daniel Couri e Josué Pellegrini): estimular uma conduta responsável nas contas públicas só logra sucesso se há suporte político da sociedade, caso contrário, sua eficácia é perdida facilmente. Infelizmente, o histórico brasileiro joga contra as boas práticas quando o tema é contas públicas.
Por sorte, o mercado somente colocou a questão do teto sob seu radar por receio de uma deterioração mais grave – que não deve ocorrer. Quando houve o uso de contabilidade criativa, em valores bem menores que o estrago fiscal que seria feito caso o teto fosse descumprido, agentes econômicos entenderam que pouco foram prejudicadas as expectativas.
Naturalmente, em um país que viveu as últimas décadas crescendo, entre outros motivos, por meio de gastos públicos, é tentadora a ideia de injetar dinheiro em obras de infraestrutura e outros projetos que estimulariam a economia. Aprendeu-se, contudo, que o dinheiro não é infinito e o desenho orçamentário brasileiro inviabiliza flexibilidade nos gastos. Além disso, caso seja dispendido algum valor para investimentos, é essencial que o horizonte de reformas esteja presente – mais até do que nesse um ano e quase nove meses de governo. Essas, sim, são fundamentais para vislumbrarmos um futuro econômico próspero no Brasil. Já perdemos tempo demais adiando mudanças estruturais em um Estado que ainda está em consolidação (são 32 anos de Constituição Federal, 35 de democracia).
Para concluir, reitero a minha visão sobre a atual conjuntura política: o compromisso com a responsabilidade fiscal não desembarcou do governo, muito graças à equipe econômica, e é improvável que desembarque. O que deve ocorrer é uma acomodação de interesses por meio de medidas fiscalmente questionáveis, mas de impacto orçamentário limitado. Pragmaticamente, o mercado deve superar as recentes quedas mais acentuadas devido aos receios envolvendo a questão fiscal. Não devemos nos esquecer, porém, da pressão pelo andamento de reformas econômicas para que a economia brasileira possa voltar a crescer em ritmo sustentável.
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Um abraço,
Felipe Berenguer
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