Hoje não há espaço para anedotas. O tema é extremamente sério e tem potencial para afetar estruturalmente a nossa economia nesta próxima década – quiçá nas seguintes.
O teto de gastos, mecanismo que limita a expansão de gastos públicos federais apenas à correção inflacionária do ano anterior, tem sido colocado em xeque em função de diferentes interesses. Interesses, inclusive, que circulam nos corredores de alguns ministérios da Esplanada, em Brasília.
Já abordei a questão fiscal brasileira em outras colunas. Assim, quem me acompanha já há algum tempo sabe que o teto não é uma finalidade em si, mas sim um caminho para que o País possa voltar a crescer de maneira sustentável no futuro. Idealmente, ele não deveria nem existir. Porém, como tivemos governos irresponsáveis fiscalmente em 2016, o teto foi criado para frear as despesas públicas – que sofrem também com outro problema: a pouquíssima margem para gastos discricionários, já que muitos aumentos, benefícios e auxílios são indexados a índices que avançam, muitas vezes, em ritmo mais acelerado que a inflação.
Dito isso, é evidente hoje que o teto de gastos é a principal âncora que impede que o gasto saia do controle, que baliza a confiança de empresários e consumidores e, logo, evita que a economia se desestabilize novamente. Ainda assim – e os anos de 2017, 2018 e 2019 estão aí para provar –, somente ele não foi capaz de promover um crescimento econômico robusto. Como também já mencionei, o Brasil sofre de carências graves de produtividade e de mau uso do orçamento público, além de uma dificuldade enorme em atingir superávits primários.
Para piorar a situação, 2020 vai ficar marcado como o ano com o pior resultado fiscal da história do País – por conta da Covid-19. É claro que toda essa situação é extraordinária e prescreveu um aumento de gastos para criar, ao mesmo tempo, uma rede de proteção a uma grande parcela da população, mais vulnerável, e garantir condições de sobrevivência às empresas brasileiras.
O problema é que, nessa esteira de aumento de gastos (ressalte-se: de forma extraordinária), surgiram pressões para que o ano de 2021 tenha maior flexibilidade quanto ao teto estabelecido por Emenda Constitucional. Por interesses políticos, econômicos, entre outros, grupos organizados optam por simplesmente ignorar a delicadíssima situação fiscal brasileira – de provável relação dívida/PIB em 100% em um futuro próximo, além de baixas probabilidades de se cumprir a regra de ouro e alcançar superávit primário nos próximos anos – para angariar dinheiro do Estado.
Em agosto, o governo precisará enviar ao Congresso a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021, que deve dispor sobre os recursos para o ano que vem e suas respectivas destinações. Alguns ministros – Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura; Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional; e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo – tentam convencer o presidente de que o governo federal precisaria de mais recursos para investir em infraestrutura, a fim de impulsionar a economia e a popularidade presidencial. O grupo teria como objetivo abrir uma “exceção” jurídica, por conta da Covid, e destinar cerca de 35 bilhões de reais do orçamento para obras públicas. A justificativa: diante de um investimento de cerca de 500 bilhões de reais na pandemia, 30 ou 35 bi não seriam valores impactantes. Tudo muito bem calculado, não é mesmo?
Tudo controlado – até a página dois. Sabemos como a dinâmica política funciona: uma vez que passa boi, é muito provável que a boiada também vá passar. A equipe econômica sabe disso e continua defendendo com unhas e dentes o teto de gastos. Guedes e sua equipe acreditam, corretamente, que o caminho para o desafogo das contas públicas é por meio da derrubada de gastos obrigatórios do governo, liberando espaço para outras despesas.
Nesse momento delicado, ideias pouco ortodoxas surgem à mesa. Já se discute estender o decreto de calamidade pública no País para 2021, para que assim o governo possa gastar sem ter de se preocupar com a Lei de Responsabilidade Fiscal, a regra de ouro e a meta de resultado primário. Em outras palavras, uma carta branca para gastar à vontade, logo no ano seguinte ao pior resultado primário da história.
Outra possibilidade discutida pelos corredores de Brasília é simplesmente rever o teto de gastos, que seria tão trágico ou até pior que buscar outras brechas no Orçamento. Com um afrouxamento do teto, não haveria mais âncora fiscal – e muito menos ministro Paulo Guedes, na minha opinião. O economista não resistiria à tamanha contradição.
Segundo cálculos baseados na projeção de inflação para 2020, o limite de despesas do governo federal vai crescer cerca de 31 bilhões de reais em 2021 – seria o menor valor de reajuste desde que o teto entrou em voga. Com o aumento automático de despesas obrigatórias, o governo terá de comprimir ainda mais os gastos com a manutenção da máquina pública (custeio) e com investimentos.
Uns preocupados com o futuro; outros, com 2022. Essa é a realidade do governo atual, em que há uma queda de braço latente sobre o teto no Planalto. Ao cabo, pouco importará se o drible sobre o teto de gastos foi, como vem sendo estudado, por meio dos saldos dos créditos extraordinários (que não entram no teto) abertos neste ano ou se a regra para o teto vai mudar. De um jeito ou de outro, a única opção viável para o mercado – e para nós, investidores – é a manutenção rígida e constante do teto.
Não podemos cometer novamente erros passados. O teto de gastos, hoje, está ameaçado por forças de vários lados. Resta saber se Paulo Guedes conseguirá resistir à pressão. Ou se, infelizmente, o posto Ipiranga vai ser mais um a fechar as portas diante de toda essa crise.
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Um abraço,
Felipe Berenguer
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