“A proliferação desses regimes especiais [tratamentos tributário e fiscal diferenciados, isenções e créditos subsidiados] nos últimos anos torna difícil reverter esse processo devido à grande resistência daqueles que se aproveitam das regras atuais – além de gerar um estímulo para comportamentos individualistas, pois todos que podem se mobilizam para obter tratamento diferenciado ou melhorar sua posição naqueles já existentes.”
O trecho acima foi retirado do excelente livro escrito por Bruno Carazza e publicado em 2018, Dinheiro, eleições e poder: as engrenagens do sistema político brasileiro. O excerto está presente no fim do livro, sendo uma das conclusões que explicam as mazelas do nosso sistema político e seus impactos sobre a economia e a sociedade. Ela tem a ver, inclusive, diretamente com os esforços do atual governo e do parlamento para levar adiante as grandes reformas estruturais que podem permitir que o País consiga prosperar economicamente.
Nas últimas duas décadas, o sequestro do Estado por grupos de interesse organizados acabou comprometendo a caixa de ferramentas estatal de crescimento e promoção de oportunidades disponíveis. Ademais – e principalmente –, ele acabou desorganizando a nossa economia, que vem crescendo em níveis tímidos demais há muito tempo.
A reforma tributária voltou à tona após provocação de agentes políticos. Agora, com a entrega oficial do texto nesta última terça-feira (21), o debate acerca do projeto que deve modificar estruturalmente o caótico sistema tributário brasileiro se intensificará nas próximas semanas. Antes de entrar no mérito da reforma, primeiro vamos compreender onde ela se encontra atualmente.
A reforma tributária já é objeto de análise entre deputados e senadores há mais de dez anos. Ela vinha sendo novamente aventada desde a aprovação da reforma da Previdência, no ano passado, e compreende, hoje, três propostas distintas: a PEC 45/19, que tramita na Câmara dos Deputados; a PEC 110/19, do Senado Federal; e o PL 3887/20, enviado recentemente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. No ano passado, houve um acordo entre Câmara e Senado para a instalação de uma comissão mista, a fim de discutir uma proposta que agradasse a todos os parlamentares e possibilitasse o apensamento das duas PECs em uma, a começar sua tramitação na Câmara (dado que a PEC 45 já foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da casa).
De modo bastante resumido, eis aqui as principais características dos três projetos:
- O PL 3887/20 é a primeira parte da reforma tributária que o governo quer emplacar. Neste momento, o Planalto propõe a extinção do PIS e do Cofins, dando fim também a uma série de regimes especiais e tributos diferenciados, e a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS, para substituir tais contribuições federais – que hoje representam cerca de um quinto das receitas tributárias da União). O CBS terá apenas uma alíquota, fixada em 12 por cento, funcionará por meio de créditos e estabelecerá uma regra geral de cobrança, dando fim à tributação “por dentro”, em que empresas incluem o próprio tributo na base (e acabam pagando mais por conta disso). A alíquota, portanto, incidirá sobre a receita bruta das empresas; a única exceção é para o setor de bancos, que terá alíquota fixa em 5,8%. Uma vez que as mudanças previstas no PL não tratam de texto constitucional, existe maior facilidade para a sua aprovação. Essa é uma reforma menos agressiva (ainda que o governo pretenda enviar outras propostas em etapas futuras). A avaliação da equipe econômica é que uma possível unificação com os tributos subnacionais ficaria para momento posterior – ou, caso as partes optem pela unificação em paralelo, não ocorrerá, seguindo o modelo de dois Impostos sobre Valor Agregado distintos, também conhecidos como IVA dual.
- A PEC 45/19, da Câmara dos deputados, foi elaborada pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e capitaneada pelo economista Bernard Appy. A proposta visa substituir cinco tributos por um só, chamado de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS): o IPI (federal), o PIS (federal), o Cofins (federal), o ICMS (estadual) e o ISS (municipal). A base de cálculo do novo imposto, o IBS, seria uniforme em todo o País, mas Estados e municípios teriam autonomia para fixar as alíquotas a serem aplicadas em todas as operações – na mesma linha do sistema de créditos. Além disso, a proposta prevê a criação de um imposto seletivo federal, o qual incidiria sobre bens e serviços que são prejudiciais à população, como o cigarro e a bebida alcóolica. Não haveria nenhum benefício fiscal neste novo modelo, por isso o texto é considerado agressivo, mas a transição de um sistema para o outro seria feita em cinquenta anos.
- Semelhante à PEC 45, a PEC 110/19 também tem um escopo de substituição de impostos maior: será criado um Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS) e nove tributos serão extintos – IPI, PIS, Cofins, ICMS, ISS, IOF (federal), Pasep (federal), Salário-Educação (federal) e Cide-Combustíveis (federal). Haverá também um Imposto Seletivo. O IBS seria estadual e a alíquota seria fixada via Lei Complementar – alguns bens e serviços poderiam fixar alíquotas diferenciadas. A PEC 110 tangencia outros pontos, como a extinção da CSLL, a transferência do ITCMD (estadual) para a competência federal e a ampliação da base de incidência do IPVA. Além disso, existiriam benefícios fiscais para operações com alimentos, medicamentos, transporte público, saneamento básico e educação infantil. A PEC 110 parece a mais agressiva em termos de abrangência e transição. Ela seria feita em apenas 15 anos.
A partir de agora, veremos inúmeros grupos de interesse buscando defender seus respectivos entendimentos sobre o que pode ser uma reforma tributária mais proveitosa e menos onerosa para seus negócios. Pessoalmente – e até por se tratar de um tema extremamente complexo –, não consigo apontar qual seria a “melhor” reforma neste momento. Evidentemente, reformas mais profundas geram resultados maiores nos prazos médio e longo, mas é sempre bom tomar cuidado com eventuais externalidades negativas – ou até mesmo ponderar a viabilidade política de um texto mais denso. Em suma, é um equilíbrio bastante delicado.
Mais importante que as reformas X, Y ou Z, na verdade, é a compreensão de que, neste processo, existirão setores mais impactados que outros. Como bem apontou Bernard Appy em entrevista recente, é mais cômodo para alguns setores, como o de serviços, optar por uma estratégia de combate às propostas em vez de construir um projeto conjuntamente. Ocorre que o setor de serviços é subtributado no País, e é possível, sim, aumentar a alíquota sem necessariamente incorrer em aumento da carga tributária. Em outras palavras: enquanto a mentalidade – “curto-prazista”, diga-se de passagem, já que os ganhos de produtividade com um sistema tributário mais simples e eficiente seriam enormes – de manutenção de privilégios permanecer, será difícil avançar.
Não é preciso ir muito longe para verificar que fazer negócios no Brasil é um abacaxi justamente pelos gastos com o contencioso tributário: no ranking Doing Business do Banco Mundial, o Brasil encontra-se, dentre um total de 190 países, no 184º lugar quando o assunto é simplicidade de tributos.
Pensamentos estratégicos e de longo prazo serão necessários para superar as profundas cicatrizes de um sistema tão complexo quanto o de impostos neste País. A defesa de interesses é legítima – e distorções ou exageros nos projetos devem ser corrigidos –, desde que feita de maneira transparente e dentro das regras do jogo. A reforma tributária pode quebrar o círculo vicioso de paralisia econômica do País somente, e tão somente, se superar o diagnóstico que Carazza muito bem descreveu:
“O resultado desse rent seeking [garantia de interesses econômicos por meio de manipulação do ambiente político e de políticas públicas] fragmentado é a inviabilização de reformas tributária e fiscal abrangentes, pois nenhum grupo admite uma piora do seu estado alcançado anteriormente”.
Falar de reformas em Brasília não é mais um tabu. Agora é a hora de quebrar o retrógrado pensamento que represa as grandes mudanças estruturais em nosso País.
Um abraço,
Felipe Berenguer
[email protected].