Entre os mais consagrados contos da mitologia grega, está o Mito de Sísifo – rei da Tessália e de Enarete e filho de Éolo, o deus dos ventos. Sísifo, dizem, era um homem dotado de muita astúcia, habilidade e inteligência, atributos que o colocavam entre um sábio e um larápio.
Foi a partir da sua incomum esperteza e ambição que Sísifo despertou a ira de Zeus, conseguiu enganar e acorrentar a Morte – que o perseguia a mando do pai dos deuses – e convenceu Hades, no inferno, a deixá-lo voltar ao mundo dos vivos.
Como bem conta Albert Camus, em um ensaio filosófico escrito em 1941 e cujo nome faz referência direta ao próprio personagem grego (O mito de Sísifo), “quando uma vez mais reviu o rosto desse mundo, saboreou a água e o sol, as pedras quentes e o mar, [Sísifo] já não quis retornar à sombra infernal”, enganando a morte pela segunda vez.
Indignados com a afronta de um mero mortal, os deuses condenaram Sísifo a uma pena pior que a morte e a posterior permanência no inferno: ao trabalho infinito e vazio de esperanças. Ele foi condenado a rolar, para toda a eternidade, uma rocha montanha acima, até o seu cume, de onde a pedra tornaria a cair até a base em função de seu peso – sendo Sísifo obrigado a reiniciar o processo mais uma vez.
Para além do esforço físico, o castigo seria especialmente cruel visto que, segundo Camus,
“todo o ser se ocupa em não completar nada “. O autor complementa o raciocínio ilustrando a frustração de ver todo seu trabalho feito em vão: “Sísifo observa então sua pedra despencar em alguns instantes rumo ao mundo inferior, de onde será preciso reerguê-la ao topo. Ele desce à planície.”
Para o escritor franco-argelino (e também para este que vos escreve), pouco importa se Sísifo era herói ou bandido; o mais sábio ou o mais sacana dos mortais. O cerne da questão encontra-se no suposto castigo, mais especificamente no momento da descida, em que se mostra maior a dor de compreender a eterna penitência e não poder se desvencilhar dela. Como o autor bem coloca: “Se este mito é trágico, é porque seu herói é consciente.” Em outras palavras, caso Sísifo tivesse sequer alguma esperança de obter sucesso naquela empreitada, sua pena tornar-se-ia praticamente inócua.
Ora, pior mesmo do que empregar demasiado esforço em algo, é constatar que todo esse dispêndio de tempo, intelectualidade, emoção e suor é absolutamente em vão. A pedra não seria tão pesada se, ao cabo, o objetivo final fosse alcançado. O fardo maior que o ex-ministro da Saúde, Nelson Teich, carregou não foi o de ser obrigado a mudar o protocolo sobre a cloroquina. O que tornou sua presença no governo insustentável foi, antes de tudo, um fardo moral.
Sem eficácia comprovada, a cloroquina (e seus pares, como a hidroxicloroquina) não é um divisor de águas no combate à Covid-19. Como o próprio Teich – que é médico – constatou, existem estudos que apontam para direções opostas: tanto indicando os supostos benefícios da droga sobre o tratamento da Covid-19 quanto alertando para os riscos de efeitos colaterais mais graves (e até fatais) a partir de um uso mais elevado da droga.
O desejo de Bolsonaro é de alterar o protocolo sobre o uso da medicação. Atualmente, ela é recomendada apenas para casos mais graves, mas a nova norma deverá recomendar o uso da cloroquina em estágios iniciais do tratamento da Covid-19. Neste contexto, de ausência de comprovação científica, tornaram-se incompatíveis com o modus operandi do governo as aspirações de Teich para mitigar os efeitos da doença no Brasil.
Assim, terminou a breve experiência – exatos 28 dias – do mais novo ex-ministro da Saúde. Em entrevista coletiva, Teich agradeceu ao presidente pela oportunidade, à sua equipe e não explicou o motivo de sua saída. Disse: “A vida é feita de escolhas, e hoje escolhi sair.”
Sísifo também fez sua escolha: desafiou os deuses gregos, foi dono de seu destino em vida e pagou a penitência post mortem. Bastaram-lhe suas próprias escolhas. “[…] Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e ergue as rochas”, escreveu Camus.
Teich foi de encontro a Bolsonaro, mas recuou. O peso da negação da ciência lhe pareceu insuportável, ainda que abrisse caminho para continuar atuando no combate ao coronavírus – como ministro – em outras frentes. Talvez, os deuses estivessem mesmo certos: não há punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança.
Um abraço,
Felipe Berenguer
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