Descoberta de uma variante sul-africana provocou vendas nos mercados. O que fazer?
A última semana de novembro tinha tudo para ser calma e confirmar a tradição de Wall Street, de que as cotações invariavelmente fecham em alta no Dia de Ação de Graças. A combinação entre o único verdadeiro feriado prolongado nos Estados Unidos e a animação da economia com a Black Friday tem sustentado valorizações das ações desde os anos 1950. O que ninguém contava era com uma declaração do governo da África do Sul. As autoridades de saúde alertaram para o surgimento de uma nova variante do coronavírus, a B.1.1.529. A nova variedade, já batizada de Ômicron, apresenta mais de 30 mutações na proteína spike.
Para não transformar seu domingo em uma aula de biologia e imunologia, vamos resumir. Um vírus faz seu trabalho quando consegue invadir uma célula. Para entrar no recinto, ele usa uma “chave”: uma proteína, conhecida como spike. Em uma tradução aproximada, um espeto que permite ao vírus enganchar-se na célula.
Se um vírus tem apenas um spike, é mais fácil para o sistema imunológico “aprender” que que usa esse espeto é uma ameaça, de forma a identificá-la e a neutralizá-la. Se há muitos spikes diferentes, a identificação fica mais difícil. É exatamente por isso que as empresas que produzem vacinas de última geração valem tanto dinheiro: os imunizantes produzidos por essa nova tecnologia são bastante eficientes em ensinar ao sistema imunológico como se defender das ameaças do coronavírus e demais vírus.
Porém, se uma variante do vírus tem muitos spikes, ela pode se ligar às células de muitas maneiras diferentes. Pense em um ladrão com uma enorme coleção de chaves. Ou de senhas. Ou ainda de números de cartão de crédito em plena Black Friday. A nova variante é muito mais contagiosa que a variante Delta, que andou provocando choro e ranger de dentes no início do ano.
Reação exagerada?
A reação ao anúncio sul-africano foi rápida e pesada. Dezenas de países, do Canadá ao Irã, proibiram a entrada de viajantes da África do Sul, e alguns deles convocaram seus cidadão em viagem a cidades sul-africanas a voltar para casa, mas tendo de ficar em quarentena. Bélgica e Israel, onde o fluxo de visitantes é intenso, já haviam detectado a variante em seus territórios na própria sexta-feira. Como não poderia deixar de ser, a notícia provocou fortes abalos no mercado.
Esses movimentos seriam a consequência natural de uma volta das medidas de restrição. Com (de novo) menos pessoas circulando, a reação mais imediata seria nos preços das ações. Empresas que ganham com o crescimento das transações virtuais, como as gigantes da tecnologia, seriam beneficiadas. Varejistas tradicionais e empresas de transporte de passageiros perderiam dinheiro. A demanda por petróleo iria encolher. E haveria a necessidade de os bancos centrais, em especial o Federal Reserve (Fed), o banco central americano, encomendar mais uma fornada de paciência com a inflação antes de pensar em voltar a elevar dos juros.
Dito e feito. Os índices de ações desabaram. As cotações do barril de petróleo caíram mais de dez dólares, maior baixa diária desde o começo da pandemia, em abril de 2020. As ações de varejistas tradicionais e de empresas aéreas foram bastante prejudicadas. Tudo porque a perspectiva de volta das medidas de restrição deteriorou bastante as expectativas com relação à normalização da economia global.
O movimento dos governos foi tão forte que até mesmo a Organização Mundial da Saúde (OMS), tradicionalmente avessa ao otimismo, pediu calma. A OMS advertiu contra o que denominou “medidas precipitadas” de alguns países e informou que, apesar de a variante ser um “motivo de preocupação”, ainda vai demorar algumas semanas para que seja possível identificar seu potencial de contágio e de letalidade. Em geral, quanto mais contagiosa uma variante do coronavírus, menos perigosa ela é. Nada impede que surja uma nova variante que seja ao mesmo tempo contagiosa E letal, mas isso até agora não aconteceu. Ao contrário, a variante Delta, que frequentou as manchetes há alguns meses, é mais contagiosa que a versão original, mas mostrou ser menos letal.
Vacina contra o pânico
Ainda é cedo para saber qual é o tamanho do problema que será causado pela Ômicron. Pode ser que a constatação de que o risco não é tão grande quanto o temor por ele provocado faça a turbulência da sexta-feira ser apenas mais um dos muitos pontos fora da curva. Pode ser que a nova variante provoque um terremoto na economia equivalente ao causado no inicio de 2020. Porém, independente de qual seja o caso, o episódio da sexta-feira (26) nos ensina uma lição valiosa.
Os especialistas em riscos das grandes seguradoras internacionais começaram a advertir para o impacto de uma pandemia nos anos 2010. Não foi dom da profecia nem bola de cristal, apenas a observação dos fatos. A confluência entre uma economia cada vez mais globalizada e conectada, populações crescentes e o avanço da urbanização sobre zonas rurais e silvestres elevou a probabilidade de surgimento de elementos contaminantes.
Bactérias são comparativamente mais simples de tratar. É difícil tratar as doenças provocadas por eles, A velha piada diz que o diagnóstico “virose” significa que o médico não faz ideia do que aflige o paciente. As saídas são preventivas, como a vacinação. Que tem as suas próprias dificuldades, pois os vírus mudam depressa (a imunização contra a gripe tem de ser renovada todos os anos). Assim, se fosse para apostar em quem seria o próximo grande assassino, teria de ser um vírus. Houve algumas epidemias localizadas como a Sars, que começou na China, e a Mers, que começou no Oriente Médio. Fizeram vítimas, mas como ficaram longe dos grandes centros, elas chamaram menos a atenção.
Por que estamos tratando de vírus e vacinas no Domingo de Valor? Porque eles podem ser determinantes cada vez mais importantes dos preços do mercado. O “próximo” coronavírus letal oriundo de uma mutação já pode estar fazendo vítimas em algum canto remoto da Ásia ou da África – ou mesmo na periferia de uma grande cidade brasileira sem saneamento básico adequado. Assim como a próxima mudança climática ou a próxima praga da soja ou o próximo surto de fundamentalismo religioso.
Qualquer estratégia de investimentos de agora em diante terá de ser mais abrangente. O investidor terá de considerar riscos que eram dados como inexistentes ou irrelevantes há apenas dois anos. Suponha que, em dezembro de 2019, você tivesse recebido um relatório de um dos analistas da Levante Ideias de Investimentos advertindo para os riscos de uma doença que surgira na China. Mesmo confiando na competência do nosso time de análise, você provavelmente consideraria esse risco pouco relevante e insuficiente para provocar alterações na alocação de seu patrimônio. Não, nenhum relatório desse tipo foi enviado. Dois anos atrás, a Covid-19 não estava no mapa dos riscos. Agora surgiu a variante Ômicron. Outras mais devem surgir, e suas consequências serão igualmente difíceis de antecipar. A conclusão é: a partir de agora, traçar o mapa dos riscos requer o trabalho adicional de tentar calcular o impacto de algo que é, por definição, incalculável.
Boa semana e bons investimentos.
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Abraços,
Equipe Levante