Sem muitas novidades sobre a política brasileira – o que não é exatamente uma má notícia, dada a ampla coleção de decepções recentes do mercado para com a política econômica deste governo –, a coluna de hoje traz uma breve resenha e algumas considerações sobre o livro “A Carta: para entender a constituição brasileira”, publicado em 2019 e organizado pelos autores Naercio Menezes Filho e André Portela Souza.
Como o próprio nome já indica, a obra traz artigos e opiniões baseadas em evidências empíricas de diversos pesquisadores para compreender o debate em torno da Constituição Federal de 1988, suas origens, virtudes e vícios, e transformações ao longo desses últimos 33 anos. Se Brasília é o espelho (ou a falta de) da sociedade brasileira, a CF/88 é fruto de uma visão de país, feita por várias mãos, e que tem incorporado inúmeras demandas à medida que a nação foi se desenvolvendo.
Evidentemente, a Carta Magna brasileira é passível, assim como qualquer outra em qualquer país ao redor do mundo, de críticas. Na introdução, os autores expõem a problemática, admitindo, já de início, o caráter perene dos debates sobre a peça: “por um lado, a sociedade parece perceber que a CF/88 firmou uma noção ampla de direitos e garantiu a amplificação de acesso aos sistemas de saúde, educação e proteção social […]. Por outro, especialistas vêm alertando que a carta e suas emendas acabaram contendo um número demasiado de regulações sobre políticas públicas, o que teria dificultado mudanças necessárias com o passar do tempo”.
De fato, o que se provou verdadeiro nesses últimos 33 anos é – ao mesmo tempo – que o Estado brasileiro precisou (e precisa) estender as mãos para grupos mais vulneráveis e trabalhar para reduzir desigualdades de oportunidades, mas não só não o faz como também gasta mais do que pode para atender grupos com mais poder, colocando em risco a sustentabilidade do que foi proposto na própria Carta Magna.
Pouco adianta, porém, permear a discussão sob perspectiva comparada. Apesar de ser muito comum, colocar lado-a-lado a constituição brasileira e, por exemplo, a Bill Of Rights (Carta Magna dos EUA) é tão efetivo quanto analisar laranjas e bananas. Aliás, o próprio documento americano já é ponto fora da curva, visto que é, no mundo e atualmente, a menor constituição escrita em vigor (considerando apenas o conteúdo inicial).
Desse modo, olhemos para evidências e dados internos, sempre levando em consideração o contexto político e socioeconômico em que a Constituição de 1988 foi concebida. Esse é, sem dúvidas, um exercício efetivo e pode tornar-se muito mais fácil com o livro recomendado.
Sobre os capítulos da obra, destaco o primeiro deles, escrito pelos pesquisadores Cláudio Couto e Rogério Arantes – ambos cientistas políticos – e que trata da trajetória da Carta Magna brasileira. Para surpresa de ninguém, os autores iniciam sua divagação constatando que dois pontos importantes: o texto original está bem distante do texto atual; e a CF/88 não para de crescer, tendo crescido 44% desde que foi publicado.
Couto e Arantes buscam mapear a “genética” da Constituição brasileira, comparando-a com outras cartas ao redor do mundo, mas também explicar o que levou às tantas modificações no texto. Argumenta-se que se, por um lado, mudanças são naturais, por outro, a grande maioria das emendas (54,6%) adicionaram novos aspectos à carta, enquanto apenas 2,6% delas tiveram a finalidade de retirar dispositivos do texto original.
Por detrás dessa lógica, está a noção, talvez exagerada, de constitucionalização de políticas públicas e governamentais – método mais eficaz que governantes, ao longo dos últimos trinta anos, encontraram para cristalizar iniciativas. Ocorre que muitas iniciativas visaram atender interesses setoriais, corporações profissionais e grupos organizados que, muitas vezes – com demandas, naturalmente, conflitantes ou mesmo questionáveis do ponto de vista do escopo da “Constituição Cidadã”.
Nesse sentido, conclui-se, o grande embate em torno da CF/88 torna-se sobre sua permanente necessidade de reformulação, em um eterno trabalho de adicionar emendas visando modificar decisões passadas. Desse quadro, a consequência é observar a carta magna convertendo-se em um campo de disputa política constante. Daí, inclusive, surge um dos grandes fantasmas de investidores, brasileiros e estrangeiros, sobre a realização de investimentos no País: a forte insegurança jurídica.
Outro destaque do livro vai para o último capítulo, cujo autor, o economista Paulo Tafner, explora a Constituição Federal de 1988 e a Previdência Social (nome do capítulo) sob o aspecto fiscal, da seguridade social e demográfico. Ele é essencial para esmiuçar os motivos pelos quais chegamos no limite com as despesas previdenciárias no Brasil e entender a importância da reforma da Previdência concluída em 2019 – quiçá, a maior de todas já feitas no Brasil desde o advento da Carta Magna.
Por meio de evidências empíricas, o economista demonstra como atingimos o nível de despesas previdenciárias – como proporção do PIB – de um país cuja população pode ser considerada já velha, mesmo sendo tendo um perfil demográfico jovem. Desde 1988, os gastos nesse segmento aumentaram cerca de 300%, indo muito além da expansão considerada natural pelo número de pessoas atendidas.
Nota-se, entretanto, que foi preciso flertar com a insolvência do estado brasileiro para que correções restritivas fossem feitas ao programa de Previdência Social. Esse é o quadro que reflete, pura e simplesmente, as dificuldades de se reparar alguns privilégios, disfarçados de direitos, de trechos da Constituição Federal – no caso dos regimes de previdência, mesmo havendo inúmeros dados e evidências sobre a regressividade do sistema.
Em suma, a Carta brasileira teve grandes méritos nesses 33 anos, possibilitando avanços importantes em diferentes campos da garantia de direitos fundamentais e implementação do mínimo de suporte estatal para o bem-estar da população, mas também criou nós complexos e apertados do ponto de vista de políticas públicas. Essas distorções, vale ressaltar, dizem muito mais sobre o sistema político brasileiro e o processo de tomada de decisão dos governantes e legisladores, do que propriamente do desenho do documento constitucional. Não se nega, porém, que houve pouco controle sobre os limites da abrangência da Carta Magna brasileira – que já dura mais do que a mediana (19 anos) histórica das constituições, abrindo espaço, pelo menos teórico, para questionamentos sobre seu prazo de validade.